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Caio Porfírio Carneiro
Página publicada em: 15/06/2010
Legenda viva da narrativa brasileira. Legítimo representante da melhor literatura que a crítica convencionou chamar de "nordestina". Depois de José Américo de Almeida, José Lins do Rego e Graciliano Ramos, foi o autor capaz de despertar o leitor brasileiro para o problema antigo - mas tratado de um ponto de vista completamente novo - do insalubre e degradante mundo das salinas do Nordeste brasileiro, onde o homem é colocado na antecâmara do próprio Inferno.
Imagem
Caio Porfírio Carneiro nasceu a primeiro de julho de 1928, em Fortaleza-CE, vivendo na fazenda Pau Caído, propriedade de seu avô Martiniano Carneiro, "coronel" da Guarda Nacional. Em 1952, bacharelou-se em Geografia e História pela Faculdade de Filosofia de Fortaleza. Em 1955, transferiu-se para São Paulo, onde vive até hoje. Suas narrativas colocam em cena o comovente drama do "homem nordestino" acossado pelas mazelas de um meio físico e social hostil e degradante, como o das salinas do Ceará, reveladas em O Sal da Terra, cuja primeira edição apareceu no Rio de Janeiro, em 1965. Entre os livros mais conhecidos de Caio Porfírio Carneiro estão, ainda, Trapiá (contos, 1961), Os Meninos e o Agreste (contos, 1969 - Prêmio Afonso Arinos, da Academia Brasileira de Letras) e O Casarão (contos, 1975 - Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro). Caio Porfírio Carneiro é Secretario Administrativo da União Brasileira de Escritores (UBE/SP).
 
 
TRECHO DE OBRA (1º capítulo de O Sal da Terra):
 
 
Um brabo, anos atrás...
 
Já pegou em ferro-de-cova?                                                                  
– De quê?
– Ferro-de-cova.
– Não, senhor.
O homem encarou-o alguns instantes, mãos nos quadris, blusão de linho, chamou o auxiliar.
A fila estendia-se por dezenas de metros. E toda a salina era um vasto formigueiro branco. Pirâmides de sal grosso, sobre os aterros, perfiladas, imponentes como estátuas. Sol a despejar sua cegante luminosidade.
O auxiliar aproximou-se, papéis na mão:
– Diga.
– Este brabo fica também. Leve ele. E meta logo no serviço.
Submisso, encolhido, o novato tarefeiro continuou ali parado, indeciso, vai-não-vai, olhar de interrogação.
– Vamos, seu brabo! Siga este homem. Ou para que diabo se meteu na fila?
Desorientou-se, um pé coçou o outro, decidiu-se:
– Hem?... Pois sim... Sim, senhor...
Saiu no passo mole, alpercatas de rabicho, esforçava-se para acompanhar o andar ligeiro do auxiliar.
A salina era um viveiro de homens a subir e descer pelas longas pranchas estreitas, a transportar cestos transbordantes de sal grosso. Nos baldes, dezenas de mãos, em ritmo uniforme, cadenciado, batiam os ferros-de-cova e chibancas nas ramas cristalizadas para espatifá-las. E os pequeninos estilhaços brilhavam ao sol como agulhas.
– Arreie aí sua carga.
O novato tarefeiro deitou o saco no batente de paiol, tirou o chapéu e escorreu o suor da testa com o indicador. Fitou, apertando muito as pálpebras, a pirâmide de sal sobre o aterro.
– Não olhe muito pra brancura. Você não está acostumado.
– Dói na vista.
– Avisei. De onde veio?
– Do sertão. Trabalhava...
– E onde mora?
– Cheguei ontem e vim logo caçar serviço. Minha mulher e os dois meninos estão debaixo dum cajueiro, aqui perto.
– Pois procure morada. E não muito longe. O serviço aqui começa às seis. E em noite de lua o serviço entra pela madrugada.
– Sim, senhor.
– Já viu salina?
– Vi não. Cheguei do sertão...
– Sei disso. Por hoje guarde os teréns aí no canto do paiol e tire as alpercatas. Esta salina se chama Margarida.
– Como?
– Margarida.
– Como nome de gente...
– Mas não é gente, é salina.
– Sim, senhor.
– Tem calção?
– Tenho não.
– Precisa. Arregace as calças. Isto. Tire essa camisa. Ninguém se mete vestido no cloreto. Depressa que tem mais gente para atender.
Obedeceu nervoso, encabulado, sem jeito. Mundo estranho aquele em que se metera. Ouvira sempre dizer que nos períodos de seca as salinas dobravam de produção, necessitavam de braços e mais braços, que a safra de sal era muito grande.
– Pronto?
– Sim, senhor...
Ficou ali, nu da cintura para cima, calças arregaçadas nos joelhos, braços encolhidos, em cruz, escondendo pudor.
– Não, não. O chapéu é preciso. Bote ele na cabeça. Ora já se viu... Você sabe o que é quentura de sol?
– Sei. No sertão...
– Que nada! Bote o chapéu. E me acompanhe. Isto aqui é salina, não é sertão.
Dirigiram-se ao aterro. E do alto do barranco o auxiliar soltou o grito, mãos em concha cobrindo a boca:
– Êi!
Veio o caraolho, suor a pingar do queixo:
– Sim?...
– Este brabo vai começar hoje. Vem do mato. Não conhece o serviço, nunca viu o mar. Meta ele nos cestos.
O novato tarefeiro admirava, de perto, a legião de homens sobre chibancas e ferros-de-cova, suores a escorrer coleantes, de costas luzidias, joelhos emergindo da água choca dos cristalizadores, coalhos de sal verde a se abrir em gomos.
– Meter esse brabo nos cestos?
– Bote nos cestos. Tem muito sal para carrear. E se prepare que vem mais.
O auxiliar retirou-se, papéis agora presos ao sovaco. O novato tarefeiro acompanhou-o com o olhar, como a pedir proteção. Aquilo tudo lhe parecia muito confuso: gente a quebrar sal, a correr no chouto ligeiro sobre os empranchamentos, conduzindo balaios. Ouvia ordens esquisitas: “Limpa os salitros!” – “Cuidado com a revência!”. E, queimando como brasa, um sol reverberante, a doer na vista e nos nervos como mil navalhas.
– Desça aqui. Ligeiro.
O novato tarefeiro desceu o aterro, para dentro da salina, com cautela, escorregando.
– Cuidado, seu brabo! Você se estrepa nas águas-mães.
Viu-se no meio dos homens, sentiu-se um estranho, um empecilho. Equilibrava-se sobre tábuas, sem habilidade. Sentiu o encontrão, desequilibrou-se, por pouco não cai.
– Olha a frente, brabo! Quer que eu derrame o sal?
O caraolho puxou-o pelo braço:
– Aprenda primeiro a andar sobre as pranchas. Fique aqui. Pronto. Venha agora devagar, na minha pisada.
Acompanhou com prudência exagerada, coração pulsando forte, medo de despencar da prancha e cair num dos cristalizadores, onde grupos de homens quebravam o coalho espesso de sal e o recolhiam em pequenas pirâmides.
– Isso. Pise firme. A tábua não tem prego.
– É quente...
– Acostuma.
Sentiu-se aliviado quando chegaram do outro lado. Suspirou. O caraolho acompanhou o chamado com gesto de mão:
– Ôi!
E para o novato:
– Você vem de onde?
– Do sertão...
– Foi a seca?
– Foi.
– Como é o seu nome?
– Nonato. Nonato Aparecido da Silva.
– Solteiro?
– Não, senhor. Deixei a patroa e os meninos ali perto, debaixo dum cajueiro.
– São pequenos?
– A Cristina tem cinco anos e o Leocádio já faz um mandado. A patroa se chama Maria.
Sorriu murcho, estendeu o braço timidamente:
– Vim caçar serviço aqui... Disseram que é de futuro...
– Pois bem. Aqui, na Margarida, ninguém se encosta. O serviço é puxado.
– É tudo branco... Dói na vista...
Braços de símio, a coçar as brotoejas, pelos do peito branquejando de sal, aproximou-se o baixote:
– Diga.
– Mais um brabo. Tome conta dele. Meta nos cestos.
– Nos balaios? Brabo começa é na chibanca e no ferro-de-cova.
– Ordem é ordem.
– Loucura.
Examinavam o novato, discutiam, mediam-lhe o físico, comentavam sua total ignorância do serviço, lembravam desastres passados com outros brabos devido à teima em jogar-lhes ao ombro, logo no primeiro dia, balaios pesados de sal.
O novato tarefeiro sentia-se aflito, acuado, recuava, bambo de corpo, coçava os braços para fazer alguma coisa.
– Está bem, está bem, jogo ele nos balaios. Se não der conta do recado, quem se estrepa não sou eu. Estou avisando.
O caraolho se foi, o baixote ordenou:
– Me siga.
Andavam sobre tábuas. O novato tarefeiro abria os braços, medo muito, para manter o equilíbrio. Entraram num dos cristalizadores.
– Pode pisar no sal. Ele não morde.
Sentiu a água morna alcançar-lhe os joelhos e grânulos pontudos machucar a sola dos pés. Pilhas de sal fresco aguardavam vez de serem carreadas para os barrancos. Descobriu, curioso, que grande número daqueles homens trazia no ombro um mondrongo enorme, músculo intumescido como aleijão.
– O que viu?
– Estava olhando...
– Admirado?
– Hem?...
– Aquilo, meu velho, é do pau dos balaios. Com o tempo você também fica assim. Ponha este jucá no ombro. Assim não. Assim. Isso. Segure aqui. Não está habituado a conduzir enxada no ombro? Pois. Mesma coisa. E tire as mãos dos olhos...
– Dói...
– Acostuma.
Sentiu forte pressão sobre o ombro, dobrou os joelhos, reuniu forças para equilibrar-se. Homens penduravam, nas pontas do pau, balaios cheios de sal.
– Aguente firme. Pesa muito?
Por detrás do sorriso murcho procurou negar a força que fazia:
– Não, senhor.
– Pois suba aí na prancha. Pronto. Pode ir. Despeje tudo lá naquela ruma, no aterro. Aquela terceira, de lá pra cá. Está vendo?
– Estou.
Vira confusamente várias pilhas brancas ao longe e homens a conduzir balaios em todas as direções.
– Acompanhe a marcha dos outros.
– Hem?...
– Acompanhe os outros. E volte logo.
– Sim, senhor.
– Pode ir. Quem sabe um dia você chegará a mestre... Vá andando.
Ninguém lhe dava mais atenção. Todos voltados para seus serviços. Bolas azuladas bailavam-lhe na vista como lâminas de aço. Com dificuldade, equilibrava-se na ponta da prancha estreita e bamboleante. Preparou-se para a caminhada. Era como uma ponte imensa solta no espaço. Amparou o peso com as duas mãos. Respirava fundo. A forte luminosidade cegava-o.
No desespero de invocar proteção, apenas viu a mulher com o filho ao lado e a filha a correr tangendo carneiros, um ramo verde na mão, fita presa aos cabelos.
Deu o primeiro passo, iniciando a caminhada.
 
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Leia mais sobre Caio Porfírio Carneiro:
 
 
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