A AMAZÔNIA RESGATADA -
Resenha escrita por Adelto Gonçalves e publicada no jornal "O Primeiro de Janeiro", 20/12/2004, Suplemento das Artes das Letras, Porto, Portugal
Nicodemos Sena, nascido em Santarém, no Pará, em 1958, estreou com um livro-monumento – A Espera do Nunca Mais - Uma Saga Amazônica, romance de 877 páginas (Belém, Editora Cejup, 1999) –, que ganhou em 2000 o Prêmio Lima Barreto/Brasil 500 Anos, da União Brasileira de Escritores, e já está em segunda edição. Agora, o romancista volta com um livro de menor fôlego, A Noite é dos Pássaros, igualmente uma extraordinária saga amazônica, a aventura de um naturalista que quase foi devorado por canibais na metade do século XVIII.
Para o conhecedor da História luso-brasileira, não é preciso dizer que este livro é inspirado na vida do baiano Alexandre Rodrigues Ferreira, que, nascido em 1756, viajou, aos 14 anos de idade, para Portugal, retornando ao Brasil em 1783 como naturalista formado na Universidade de Coimbra. No Grão Pará e no Mato Grosso, Ferreira esteve por uma década, pesquisando as riquezas naturais do sertão e fazendo anotações de que resultou o livro Viagem Filosófica pelas capitanias do Grão Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá (Rio de Janeiro, Conselho Federal de Cultura, 1974).
Em A noite é dos Pássaros, o pesquisador setecentista aparece um pouco disfarçado atrás do nome Alexandre Rodrigo Ferreira, naturalista formado na Academia de Lisboa, que, em 1751, é aprisionado na foz do rio Amazonas por índios tupinambás, canibais famosos no velho mundo pelo modo hospitaleiro com que tratavam os seus prisioneiros, “dando-lhes do bom e do melhor, e de um tudo, para depois devorá-los a “cauim pepica”, ou seja, assados e regados com bebida.
No cativeiro mantido por um povo ágrafo, Alexandre descobre um livro que foi parar na aldeia depois de um naufrágio.
A obra narra uma trajetória semelhante à do cativo, a do alemão Hans Staden, que também fora prisioneiro dos tupinambás numa aldeia em Ubatuba, no litoral norte de São Paulo, no século XVI.
Como se vê, a exemplo do que Velázquez fez no seu famoso quadro “Las Meninas”, que faz parte do acervo do Museu do Prado, em Madri, Sena deixa exposto o seu trabalho de artesania. Leva, assim, o leitor a perceber que retirou do livro Duas viagens ao Brasil – arrojadas aventuras no século XVI entre os antropófagos do Novo Mundo (São Paulo, 1942), de Hans Staden, boa parte dos elementos que empregou no romance, buscando num relato de um acontecimento que se supõe real o material que empregaria em sua ficção. Muniu-se, portanto, da realidade para mentir melhor, como fazem todos os grandes mestres da ficção.
Engana-se, porém, quem imagina que A Noite é dos Pássaros seja apenas um romance baseado em pesquisas de arquivo, de foro documental. É mais que isso. Tal como fizera em A Espera do Nunca Mais, Sena constrói ainda um instigante ensaio dos costumes dos indígenas brasileiros, sobretudo o canibalismo, que ameaça durante toda a narrativa a vida do jovem prisioneiro. Embora protegido pelo amor de Potira, a filha do cacique da tribo, só ao final da trama, o naturalista escapa da triste sorte que tornou famoso dom Pero Fernandes Sardinha, primeiro bispo do Brasil, devorado pelos índios caetés na costa de Alagoas, ainda no século XVI.
Depois de Márcio Souza e Milton Hatoum, a Amazônia volta de novo ao cenário literário com um romancista seguro, que, a exemplo de seu livro de estréia, mostra que sabe como manter o suspense até o último parágrafo, fazendo o leitor viver a situação aflitiva de seu personagem, ao mesmo tempo em que o leva a conhecer o conflito étnico-cultural que se dá entre o europeu civilizado e o homem ainda no estado bruto da natureza.
Para alcançar esse objetivo, o autor não hesitou em usar o tupi antigo na fala dos personagens, não por acreditar que se possa voltar ao passado ou por filiar-se a certo nacionalismo xenófobo, como diz, mas por dois justos motivos que expõe em nota ao final do livro: primeiro, por irresistível apelo da própria narrativa e, segundo, “pela grande importância que essa língua apresenta para a cultura brasileira, tendo servido de argamassa para grandes obras de nossa literatura”.
Não faz Sena um retorno tardio ao indigenismo de José de Alencar, até porque a linguagem que usa nada tem do derramado estilo oitocentista do autor de Iracema, mas não há como deixar de compará-lo ao indigenismo hispano-americano do paraguaio Augusto Roa Bastos e, principalmente, do peruano José María Arguedas. Se em Arguedas o que se lê é um castelhano tomado pelas características do quechua, em Sena é o português contemporâneo que ganha ritmo e vocabulário do idioma tupi.
Como a poeta e escritora Olga Savary já percebera em seu livro de estréia, Sena domina a arte da narrativa, seduzindo o leitor com um estilo impecável, que faz da palavra um espetáculo, tal como a Amazônia com sua exuberante floresta.
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*ADELTO GONÇALVES é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de “Gonzaga, um Poeta do Iluminismo” (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e “Bocage – O Perfil Perdido” (Lisboa, Caminho, 2003)