"Esse amor, essa generosidade, essa crença no futuro e na cultura é pouco encontrável, salvo entre os que têm a fala da terra, a memória misteriosa da selva, o espírito das fábulas e ousam povoar coletivamente os sonhos." (CARLOS NEJAR, da Academia Brasileira de Letras, "A Tribuna", Vitória, ES, 14.05.2017)
“De que nos vale cantar, escrever poemas e romances se o manto escuro de uma ditadura militar nos oprime, violenta e mata de fome? De que nos valeria um poema por mais bem-feito que fosse?”, perguntava a mim mesmo, ainda jovem, em 1979. Mais valia ter um revólver, deitar abaixo o rei, tramar assaltos e revoluções e escorraçar os mandarins do Brasil...
Pensando nisso, dava os primeiros passos na profissão e vida de militante que durariam os anos que tenho. Fui ao estádio da Vila Euclides, em São Bernardo do Campo (SP), ajudar na cobertura de uma grande assembleia de metalúrgicos que decidiria os destinos de uma das greves mais importantes do período.
Em meio ao vozerio ensurdecedor, ao bulício da aglomeração de milhares e às rasantes dos helicópteros militares, Lula anunciou o poeta Vinicius de Moraes, já perto da morte que o acometeria um ano depois, para que declamasse à multidão revoltosa seu poema Operário em construção. Sorri desdenhoso por um momento. Quem ali ouviria um só verso desse poema que — ainda por cima — era longo? Sequer conseguiríamos escutar, por mais que tentássemos em homenagem ao velho e famoso poeta.
O que se deu então surpreendeu o menino e calou fundo em muitos que a partir dali não tiveram dúvidas em abraçar a luta contra a ditadura e fizeram-se militantes. Fez-se um silêncio total. Até mesmo os helicópteros não atrapalhavam mais. Tinha a impressão de poder distinguir uma mosca que voasse perto. A multidão ouviu a voz fraca do cantor prendendo a respiração. Perguntei-me se não seriam assim as ágoras dos antigos gregos em suas assembleias proto-democráticas.
Tive minha resposta. É possível sim ao canto, ao poema e à literatura serem mais fortes que o cão engatilhado de um revólver.
Nicodemos Sena, escritor amazônico que mora no Estado de São Paulo, escreveu esse outro longo poema sobre algo parecido mas não igual ao de Vinicius. Se os versos deste despertavam a consciência de classe, os de Nicodemos apelam à consciência da Nação e à necessidade da resistência como arma política de um povo para se opor, não apenas a uma infeliz atual ditadura, mas contra a rapinagem dos seus recursos.
Nicodemos evoca a ação resistente: “Assim agem os que/ dia após dia/ envenenam o povo./ Assim apregoam/ os ministros da morte./ Mas nós resistimos!”
Na criação de um arraial ou acampamento de resistência, a voz de Nicodemos apela à razão de um povo em movimento: “No atabaque dos jovens/ e na voz das mulheres/ os antepassados nos falam./ Não podemos agir de outro modo./ Resistir é preciso!”
Nicodemos Sena é escritor e trabalhador. Seu primeiro livro publicado, já em 3ª edição, com 1.112 páginas, A espera do Nunca mais, arrebatou, no Rio de Janeiro, em 2000, o prêmio Lima Barreto/Brasil 500 Anos. Depois desse, seguiu-se a narrativa dos índios amazônicos no romance A noite é dos pássaros (2003). Mais um romance, dessa vez em prosa incrivelmente poética e imaginativa: A mulher, o homem e o cão (2009). E, recentemente, voltou ao seu Estado do Pará resgatando a história de seu pai e povo no romance-crônica Choro por ti, Belterra!
Quem escutar esse seu poema Ladrões nos Celeiros: Avante, Companheiros! haverá de lembrar-se sempre da força das palavras em poesia."
(prefácio escrito por Leandro Carlos Esteves, escritor, jornalista e historiador formado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo)
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