"Sombras sobre a terra", publicado em 1933, é um romance paradigmático, pois encontra parentesco com a temática encontrada em Juan Carlos Onetti, de "Junta-cadáveres"; em Alejo Carpentier, de "Os passos perdidos"; no Vargas Llosa, de "Pantaleão e as visitadoras", ou ainda em José Donoso, de "O obscuro pássaro da noite", obras que, no mesmo diapasão, tratam com pungente realismo a vida e as relações nos prostíbulos. Ainda, nos descortinam o mundo e a natureza dos apartados e marginalizados que não conseguem debelar o vazio e a agonia de suas vidas. Ao mesmo tempo, esse romance-catarse de Espínola instaura uma discussão sobre o eterno embate entre o Bem e o Mal, entre o Centro e a Periferia, uma vez que, na esfera onde transcorre todo o romance, há o enfrentamento do personagem com as extremidades do espaço geográfico que o confina, num povoado dividido entre o Centro e o Baixo, numa alegórica simbologia das dicotômicas divisões que caracterizam a vida das cidades e dos povos, ou uma metáfora do maniqueísmo invocado nas relações humanas, onde Céu e Inferno, Carne e Espírito, Sagrado e Profano convivem em esquizofrênica simbiose. (Texto de orelhas do escritor e crítico Ronaldo Cagiano). Leia o texto completo, a seguir.
Dando continuidade ao mapeamento de obras que marcaram não apenas a bibliografia brasileira, mas também o universo estético latino-americano, e que, por negligência do mercado editorial, muitas delas caíram no esquecimento, e outras ainda não chegaram às nossas livrarias, a Letra Selvagem premia o leitor brasileiro com essa edição pioneira de Sombras sobre a terra, do uruguaio Francisco Espínola, uma das vozes mais representativas na ficção de língua espanhola, até então pouco conhecido entre nós.
Em primoroso posfácio, o escritor e ensaísta uruguaio Leonardo Garet descortina o processo criativo e a concepção estética do autor e da obra e nos faz penetrar no ambiente de um prostíbulo, onde se desenrola a história do jovem Juan Carlos, atmosfera povoada de seres e sombras, que dividem entre si as mesmas angústias, num espaço inquinado socialmente.
Nessa narrativa candente e de profundo mergulho existencial, o protagonista é um órfão de pai assassinado e de mãe vítima da tuberculose, falecida após longo padecimento. É num imenso e solitário casarão, onde passa seus dias, cuidado pela negra Basília, que Juan Carlos experimenta uma errância e uma insularidade psicológica e interior, enfrentando desde cedo os perigos do mundo, crescendo à revelia de valores, encurralado por uma realidade crucial que o move numa luta para defender-se dos abismos, vícios, delitos e impossibilidades ofertados pelo quotidiano miserável.
Numa espécie de marginalidade social e moral, a dilacerante experiência de abandono é tratada pelo autor com uma pródiga carga de solidariedade com seu personagem. No espaço-tempo em que emergem os dilemas e dramas do jovem Juan Carlos, as figuras do pai e da mãe são evocadas não apenas como lembrança, mas como instância questionadora e de apaziguamento. Numa cena, diante de sua amante, a prostituta Nena, em cujo rosto amplifica a imagem de sua mãe, ele acaba por expiar-se, como num processo de autoimolação, na captura de uma memória ancestral, em que afloram sentimentos e afetos que se (con)fundem numa mesma e desesperada tentativa de se reconhecer e se inquietar diante do seu destino tumultuado, traçado pela prostituta, como um caminho indesviável.
Sombras sobre a terra é um romance paradigmático, pois encontra parentesco com a temática encontrada em Juan Carlos Onetti, de Junta-cadáveres; em Alejo Carpentier, de Os passos perdidos; no Vargas Llosa, de Pantaleão e as visitadoras, ou ainda em José Donoso, de O obscuro pássaro da noite, obras que, no mesmo diapasão, tratam com pungente realismo a vida e as relações nos prostíbulos. Ainda, nos descortinam o mundo e a natureza dos apartados e marginalizados que não conseguem debelar o vazio e a agonia de suas vidas.
Ao mesmo tempo, esse romance-catarse de Espínola instaura uma discussão sobre o eterno embate entre o Bem e o Mal, entre o Centro e a Periferia, uma vez que, na esfera onde transcorre todo o romance, há o enfrentamento do personagem com as extremidades do espaço geográfico que o confina, num povoado dividido entre o Centro e o Baixo, numa alegórica simbologia das dicotômicas divisões que caracterizam a vida das cidades e dos povos, ou uma metáfora do maniqueísmo invocado nas relações humanas, onde Céu e Inferno, Carne e Espírito, Sagrado e Profano convivem em esquizofrênica simbiose.
Francisco (Paco) Espínola é um autor fundamental para a consolidação de uma consciência estética e uma fiel apreensão da nossa latinidade. Com este monumental Sombras sobre a terra, na impecável tradução de Erorci Santana, junta-se a outros autores que tradicionalmente popularizaram o melhor da novelística uruguaia do século 20 (como Ángel Rama, Eduardo Galeano, Enrique Amorim, Felisberto Hernández, Horacio Quiroga, Juan Carlos Onetti, Mario Arregui, Mario Benedetti, Ricardo Güiraldes e Rômulo Gallegos), familiarizando-nos com o contexto histórico, geográfico, social e psicológico, de modo que possamos compreender o caráter e a formação da identidade e dos valores desse imenso, polifônico e trágico continente, com seu dualismo, sua fragmentação e seus sortilégios, com uma perturbadora – e ao mesmo tempo poética – dimensão humanista.
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*Ronaldo Cagiano é escritor e crítico literário, autor, entre outros, de Dezembro indigesto (contos)
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