Neste texto, publicado originalmente no jornal de literatura "Rascunho" (PR, edição de maio de 2010), o escritor Luiz Ruffato inaugura a seção PELA MARGEM mostrando quem são e como sobrevivem as micro e pequenas editoras brasileiras, começando pela Editora Mulheres e a LETRASELVAGEM. Confira.
Até por dever de ofício, sempre me interessei por
tentar compreender o funcionamento do meio editorial. O nosso, formado
por cerca de 500 empresas que publicam mais de 330 milhões de exemplares
e faturam R$ 3,3 bilhões por ano, é particularmente interessante. Não
deve haver hoje, no mundo, mercado potencialmente mais promissor: somos
200 milhões de pessoas, a imensa maioria pronta para compartilhar o
prazer que o livro proporciona. Faltam, é claro, as condições objetivas:
educação e dinheiro, mas, pouco a pouco, essa situação vem se
revertendo.
Embora 10% da população brasileira ainda detenha
75,4% do total das riquezas do país, a renda da parcela mais pobre vem
conhecendo melhorias significativas — em 2008, segundo dados do
Instituto de Pesquisas Econômicas (Ipea), esse número foi igual a 22%,
enquanto o crescimento da renda da parcela mais rica, no mesmo período,
foi de 4,9%. Por outro lado, de acordo com o Instituto Nacional de
Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), o número de alunos inscritos no
ensino universitário cresceu 150% entre 1994 e 2004 — embora,
evidentemente, falte muito ainda para alcançarmos um ensino de qualidade
e para conhecermos um país socialmente mais justo.
A questão é
que, diante do tamanho da nossa população e da quantidade de pessoas que
ainda não consomem livros, pelas razões expostas, o mercado brasileiro é
potencialmente interessante para os grandes conglomerados editoriais.
Não é à toa que gigantes espanhóis e portugueses têm aportado com fome
por aqui. A tendência, registrada nos últimos anos, é a de concentração
da produção de livros em alguns poucos selos — cerca de 50 das 500
empresas existentes são enquadradas, pelo faturamento, como grandes ou
médias, restando às pequenas e micro um público bastante pulverizado. E
quem são e como sobrevivem essas empresas é a pergunta que começa a ser
respondida a partir deste número. Boa parte vem percebendo que restam
nichos não cobertos pelas grandes e médias editoras e apostam neles.
Nesta edição, por exemplo, apresentamos uma editora que encontrou seu
nicho no gênero (Editora Mulheres), outra que sobrevive como ONG
(LetraSelvagem). Vamos tentar entrevistar o maior número possível de
editores (deixando de lado os selos que sobrevivem unicamente com
edições contra pagamento do autor).
Editora Mulheres
Fundada
em 1996, inspirada em sua congênere francesa, Des Femmes, a Editora
Mulheres (www.editoramulheres.com.br), de Florianópolis (SC), conta hoje
com 80 títulos lançados, entre eles a quase totalidade dos romances da
paulista Julia Lopes de Almeida (1862-1934), uma das mais importantes (e
injustiçadas) escritoras brasileiras. Zahidé Lupinacci Muzart conta
que, ao se aposentar, tinha oito orientandas de mestrado e um projeto de
resgate de escritoras do século 19, com apoio do CNPq. “No início da
pesquisa, era voz corrente de que aquelas mulheres nada tinham escrito,
e, por conseguinte, menos ainda publicado. Logo ficou claro, que, na
verdade, não só escreveram e publicaram uma grande quantidade de textos,
mas, bem mais que isso, que esses textos constituíam um legado de boa
qualidade literária e de valor histórico inquestionável”. Assim, com o
objetivo de reeditar livros de escritoras do passado, ela, junto com uma
colega, Susana Funck, fundou o selo, tocado hoje apenas por Zahidé.
A
Editora Mulheres publica basicamente autoras do século 19, ensaios
sobre feminismo e estudos de gênero. Além dos três volumes de Escritoras
brasileiras do século XIX, uma antologia que reúne, em suas mais de 3
mil páginas, cerca de 150 autoras, os livros que mais lhe deram projeção
foram Úrsula, de Maria Firmina dos Reis (1825-1917), o primeiro
romance de uma mulher negra no Brasil, editado em 1859, e Masculino
feminino plural, ensaios organizados por Joana Maria Pedro e Miriam
Grossi. O processo de edição ocorre com o envio do texto para duas
pareceristas e só depois de recebidos os pareceres (e se forem
favoráveis) são feitos o orçamento e o planejamento da publicação, que a
editora banca parcialmente, com a participação efetiva do autor. Os
próximos títulos previstos, até julho, são o romance O perdão, de Andradina de Oliveira, com organização de Rita Terezinha Schmidt (no prelo) e Estudos In(ter)disciplinados: gênero, feminismos, sexualidades, conjugalidades, organização de Mara Coelho de Souza Lago, Miriam Pillar Grossi e Adriano Henrique Nuernberg; Mulher e literatura – 25 anos: raízes e rumos, organização de Cristina Stevens; O Oriente não é longe daqui¸ensaio de Fernanda Müller e Gênero e geração em contextos rurais, organização de Parry Scott, Rosineide Cordeiro e Marilda Menezes. As tiragens são, em média, de 500 exemplares.
Editora LetraSelvagem
Responsável pelo relançamento do excelente romance Deus de Caim,
do escritor matogrossense Ricardo Guilherme Dicke (1936-2008), em sua
terceira edição, a LetraSelvagem (www.letraselvagem.com.br), de Taubaté
(SP), fundada em 2007, é um selo editorial que integra o patrimônio da
entidade cultural sem fins lucrativos, Associação Cultural
LetraSelvagem. Trata-se de uma Organização Não-Governamental sui generis,
explica seu atual presidente, o escritor Nicodemos Sena, pois há uma
cláusula em seus estatutos que veda a aceitação de qualquer ajuda do
erário público. “A LetraSelvagem foi criada como um ente da sociedade
civil que visa reforçar a cidadania em contraposição ao poder aliciador e
corruptor do Estado e às forças impositivas do mercado. Visa agregar e
dar visibilidade aos que não entraram ou foram excluídos do ‘jogo’.
Procura resgatar antigos valores, numa sociedade dominada pelo dinheiro.
Não tem sócios nem ‘donos’, pois não visa lucro.”
Em dois anos, a editora lançou oito títulos, entre poesia e romance, sendo que um de seus livros, Anima animalis — Voz de bichos brasileiros,
de Olga Savary, ganhou o Prêmio da APCA (Associação Paulista de
Críticos de Artes) como o “melhor livro de poesia editado no Brasil em
2008”. A intenção da editora, ainda segundo Sena, é promover o gosto
pela leitura e resgatar autores e livros de alto nível literário mas
que, por razões extraliterárias, caíram no esquecimento. “Esta
valorização da literatura de boa qualidade se estende a autores e livros
de outros países da América Latina e mesmo da África”, explica Sena.
Com seis títulos previstos para este ano (os próximos são os romances Gente pobre, de Dostoievski; A maldição de ondina, do português-moçambicano António Cabrita e O sal da terra,
de Caio Porfírio Carneiro), a idéia é, a partir do ano que vem, passar
para dez títulos anuais. E nesse caso, estão previstos os romances Selva trágica, de Hernâni Donato; Os desvalidos, do mexicano Mariano Azuela; Sombras sobre a terra, do uruguaio Francisco Espínola, entre outros.
Sena
explica que a editora banca integralmente as edições, pois se recusa a
se tornar mais um “caça níquel” na área do livro ou “explorar autores
incautos”. “Contudo, por não aceitar ‘ajuda’ do erário público e não se
prestar a ser chapéu para negócios escusos, vê-se na contingência, aliás
salutar, de depurar os critérios para a aceitação dos textos que lhe
são apresentados e não errar na escolha dos livros a serem reeditados”.
As tiragens, atualmente de mil exemplares, devem passar para 1,5 mil no
ano que vem.
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* Luiz Ruffato é escritor mineiro de Cataguases. Autor de Estive em Lisboa e lembrei de você, Eles eram muitos cavalos e da pentalogia Inferno Provisório, entre outros títulos. Vive em São Paulo (SP)
** Alguns dos títulos anunciados na matéria de Luiz Ruffato já foram publicados pela LetraSelvagem.