É do convívio com índios e cabloclos das selvas da Amazônia, onde nasceu, que o escritor brasileiro Nicodemos Sena extrai a matéria-prima com que tece os seus romances. Estreou em 1999 com o romance "A espera do nunca mais", uma saga de 876 páginas, que ganhou o Prêmio Lima Barreto/Brasil 500 anos (Rio de Janeiro). Nesta entrevista, Nicodemos Sena fala de sua origem amazônica e dos autores e livros que lhe influenciaram, e dá conselhos aos novos escritores. (Entrevista publicada no jornal "Alto Madeira", Rio Branco do Acre, 23/03/2010)
SELMO VASCONCELLOS entrevista NICODEMOS SENA
SELMO NASCONCELLOS - Como surgiu seu interesse literário?
NICODEMOS SENA - Fui fisgado pela literatura ao ler, aos 13 anos de idade, o romance Ressurreição, de Machado de Assis. Nessa época, as espinhas começavam a despontar em meu rosto e os livros tornaram-se o meu “esconderijo”. Li tudo da pequena biblioteca do meu tio Olindo Neves, professor de português em Santarém, município do oeste do Pará, onde nasci e vivi até 1977. Neste ano, vim para São Paulo estudar e trabalhar... e sofrer no primeiro ano como operário da indústria têxtil, sem nunca desistir do meu sonho de ser um dia escritor. Imagina! Ser escritor num país como o Brasil, onde não se dá nenhum valor ao pensamento que brota do povo! Se eu soubesse que aos 51 anos o sonho de ser um “escritor brasileiro”, assim como Tolstói foi um “escritor russo”, poderia ter se transformado num pesadelo... Pois, com o golpe militar de l964, que entregou o Brasil ao grande capital, nuvens de vorazes ‘gafanhotos’ começaram a roer a nossa Amazônia e muitos se acanalharam e passaram a se envergonhar de serem brasileiros.
S.V - Quais os escritores que você admira?
N.S - Depois de Ressurreição, vieram Os miseráveis, de Vitor Hugo, Camilo Castelo Branco e os “românticos” brasileiros. O Machado de Assis das Memórias póstumas de Brás Cubas e de Dom Casmurro foi uma descoberta, mas Vidas secas, de Graciliano Ramos, foi um murro na cabeça. Enfim, a literatura dava um salto qualitativo, da revolta piedosa para a fria razão, sem nenhum prejuízo para a Arte. O ódio ao Soldado Amarelo e a resignação de Sinhá Vitória produziram um clarão no meu entendimento. Como se um raio me partisse ao meio, compreendi o sentimento do homem corajoso e sensível mas forçado a se amesquinhar num ambiente hostil. Entretanto, salto maior aconteceu aos 19 anos de idade, já em São Paulo, quando conheci os atormentados e delirantes personagens de Dostoiévski, o qual é erroneamente chamado por muitos de um “escritor realista”, pois é o autor de maior imaginação que eu já li, que vai além da descrição desse mundo visível e palpável tão conhecido por todos. Sem dar-lhe o crédito, muitos escritores se inspiram nele. Metamorfose de Kafka, por exemplo, é como que o desenvolvimento de um dos tenebrosos delírios do tísico Hipolit, personagem de O idiota. Maurice Maeterlinck deve ter lido Notas do subsolo para colocar O pássaro azul como título de sua famosa peça. O engraçado é que estes autores e outros que beberam em Dostoiévski são considerados em geral autores de textos fantásticos ou absurdos, o que prova que imaginação e “realidade”, e a própria vida, caminham juntas. Também admiro muito o Dom Quixote, de Cervantes, que fundou a narrativa moderna, e Guerra e Paz, de Leon Tolstói, o grande épico russo, mas é em Dostoiévski, outro russo genial, que encontro, em estado quase puro, no vazio das situações e no silêncio das personagens, os mesmos arquétipos que me acompanham desde a infância e que aparecem em meus livros, como, por exemplo, o do índio velho sentado na beira de um rio sem nome e sem nenhuma importância, fumando o seu cachimbo e coçando os culhões, com os olhos perdidos no nada, de onde vozes e vultos, que só ele ouve e enxerga, conversam com ele numa linguagem que a humanidade já esqueceu: a linguagem dos anjos e dos demônios, e dos loucos. É este homem que aparece no começo do A espera do nunca mais, meu primeiro romance, e reaparece como narrador de A mulher, o homem e o cão, na mais absoluta solidão, e põe-se a narrar a sua incompreensível história a um ouvinte que pode bem ser você ou eu ou todos nós juntos, ou o próprio velho ou “ninguém”.
SELMO VASCONCELLOS - Você está escrevendo um novo livro?
N.S - Escrevo um romance enorme, pois só realizei um quarto do plano e já tem 200 páginas. O título provisório desse livro é a resposta que Ulisses dá ao Ciclope: “Meu nome é ninguém”. A história do homem obrigado a apagar os seus próprios passos e a esconder a sua identidade a fim de escapar não apenas do tirano que ele vê à sua frente, mas daquele que está dentro de si mesmo e quer controlar a sua mente. E nesse ponto de fuga desesperado encontram-se tanto o homem primitivo, que aparece nas lendas e mitos da minha terra amazônica, que vive isolado e solitário mas em perfeita paz consigo próprio e com o mundo, como também o homem “moderno” ou “pós-moderno” fragmentado e esquizofrênico. Como vês, a literatura dos livros, que descobri aos 13 anos, fez-me tomar consciência de que a verdadeira literatura nasce bem antes nas narrativas orais do nosso povo, que até hoje me nutrem.
S.V - Qual mensagem de incentivo você daria para os novos escritores?
N.S - Leiam. Leiam. E releiam... Nos livros e principalmente na Vida. Ouçam mais do que falem. Aprendam a ouvir o silêncio. Afastem-se do burburinho do mundo sensível e da "vida literária". Aprendam a distinguir a Voz entre as tantas vozes, pois às vezes o que parece ser a mais lúcida realidade não passa de fantasmagoria. Desconfiem sempre da “realidade” e nunca se envergonhem de sonhar, pois é dentro do sonho que cada um pode encontrar o “centro do mundo”, o “seu” centro, onde nada poderá atingi-los.