Numa linguagem simbólica, Carlos Nejar constrói uma poderosa parábola do nosso tempo, numa época em que "a hipermodernidade devora os sons da primeira manhã". Confira a seguir a resenha que Fernando Py escreveu sobre o novo livro de Carlos Nejar. (texto publicado originalmente na "Tribuna de Petrópolis", 24, 25 e 26 de dezembro de 2015, Petrópolis,RJ)
Com O feroz círculo do homem (Taubaté: LetraSelvagem, 2015), prossegue o poeta Carlos Nejar a sua trajetória de ficcionista em prosa, iniciada com Um certo Jaques Netan (1991). Agora, somos apresentados a um universo de delírios e imagens numa prosa bastante enxuta e concentrada, na narrativa exposta pelo personagem Tibúrcio Dalmar, que é encarregado de guardar as sombras das almas no sótão de uma tenda em Pontal do Orvalho – entre o cimo de um monte e as margens do rio João Aragem, local que assume a forma de uma Caverna circular, comandada pelo Círculo. Este é uma entidade enigmática. Por vezes parece impor-se de modo discricionário, como se fossem ditadores os membros que o compõem. Outras vezes se mostra tolerante e compassivo – o conjunto das pessoas que o formam se assemelha a seres humanos comuns. Em toda a narrativa existe sempre essa ambivalência, ambiguidade que o próprio Dalmar não penetra inteiramente. E Dalmar expõe ao leitor sua própria ambiguidade. Admite que é um tanto difícil de ser entendido, mas todos são assim: “Não somos obrigados a explicar, muito menos a natureza. Ela nos explica e basta” (p. 22). E vive a sua vida, conta que as pessoas sofrem de alucinações e essas alucinações apareceriam em momentos de desânimo. E em todas as peripécias narradas por Dalmar, destaca-se o fato de ter sido designado pelo Círculo de administrador das sombras das almas. Custou a aceitá-lo porém acabou aceitando: as sombras das almas eram colocadas em caixas, depois substituídas por vasos fechados – eram apenas sombras, pois as próprias almas já haviam subido às etéreas alturas (p. 29).
E Dalmar se torna chefe dos arquivos dos mortos nos vasos com as sombras das almas.
Podemos esclarecer que alma, sombra, sonho, amor, bem como Deus e principalmente a Palavra, são reflexos simbólicos do universo criado por Nejar, universo em que a Palavra come a morte, indefinidamente. Portanto, O feroz círculo do homem – segundo Diego Mendes Sousa no posfácio ao livro – é uma parábola do nosso tempo, “onde a hipermodernidade devora os sons da primeira manhã” – ou seja, destrói as nossas concepções de mundo, o que provoca uma doença nefasta: o esvaecimento das almas viventes (p. 148).
Ademais, para Dalmar existe a Sabedoria e, sobretudo, o Amor. Sua sabedoria se expõe e se desenvolve no conhecimento das coisas e na citação de escritores e filósofos, o que lhe dá realce entre os seus e até dentro do Círculo. Mas é o amor de Lualva, morena “encorpada, lastreada de curvas e volúpia”, que envolve inteiramente a natureza de Dalmar e o faz entender que no amor é que “principia a nascença da alma” (p. 62). Vale a pena ler e refletir sobre o livro de Nejar.
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*Fernando Py é um poeta, crítico literário e tradutor brasileiro. Traduziu a íntegra da monumental obra proustiana Em Busca do Tempo Perdido