Qual a singularidade desse autor paraense, que, segundo o crítico Fernando Py, mantém "um parentesco de poesia e encanto fônico-visual" com João Guimarães Rosa? Confira a seguir. (Resenha publicada originalmente na "Tribuna de Petrópolis", 27.01.2017, Petrópolis, RJ)
Quando me acontece escrever sobre um autor que totalmente desconheço e, ainda mais, sobre um volume que é continuação de outros igualmente ignorados, preciso, mesmo depois de uma leitura prévia, imaginar o que o autor pretende – principalmente se sua escrita segue um regime de esfoliação vocabular que mantém pontos de contato com o irlandês James Joyce. Foi assim que me senti ao ler K, O escuro da semente, do paraense Vicente Franz Cecim (Taubaté, SP: LetraSelvagem, 2016).
Os textos críticos incluídos no livro informam que se trata da sequência de uma obra “imaginária”, Viagem a Andara oO livro invisível, cujo primeiro livro é A asa e a serpente (1979). Andara, no caso, é “a Amazônia vista com olhos mágicos” e, segundo o autor, o “livro invisível de Andara é puramente imaginário, do qual só existe o título e que não é escrito” – ainda, segundo o autor, “o não-livro, corpo de corpo que se sonha.”
Este K, O escuro da semente é o quarto volume dos livros sobre Andara, e o objetivo geral é expressar a passagem a outro nível de consciência, chegar à fronteira do “não-mental” do budismo – e isto exige uma transcrição nova em ortografia, como podemos ver a cada página, a cada linha. Assim, a leitura do livro se faz bastante difícil, não exatamente como o Ulisses de Joyce, porém mais apropriadamente como o Mallarmé de “Um coup de dés jamais n’abolira le hasard” (Um lance de dados jamais há de abolir o acaso).
Por outro lado, o livro de Cecim está encharcado pelos Upanishads hindus, o que, de certo modo, pode ajudar e/ou atrapalhar o leitor comum: é absolutamente necessário conhecer bem a maneira de utilizar as palavras com um sentido “visionário” – o que demanda uma nova postura ortográfica, uma liberdade quase plena de escrever sem a preocupação de seguir regras.
Os textos de Cecim elaboram uma espécie de amálgama entre o sagrado e o profano, pois, além de praticamente destruir os limites entre a prosa e a poesia, compõem um delírio que oscila desde o uso visionário de palavras – a todo momento destituídas de sua acepção normal – e o sentido fustigante de lampejos verbais. Sua obra é o resultado da mistura de poesia e prosa, da digressão onírica e do componente filosófico, e onde a própria reinvenção da palavra está de acordo com um tipo de reinvenção do universo.
A singularidade de Cecim pertence a um modo de ser místico, diferentemente de Guimarães Rosa, porém mantendo com o autor de Grande sertão: veredas um parentesco de poesia e encanto fônico-visual. Mesmo sendo difícil, convém uma leitura cuidadosa.
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*Fernando Py é poeta, crítico literário e tradutor brasileiro. Traduziu para o portruguês a monumental obra proustiana Em busca do tempo perdido (Ed. Ediouro, 2002, RJ)