"Apesar de ser um romance realista, Sombras Sobre a Terra mostra ao leitor, no seu background poético, um sentimento íntimo de solidariedade para com as pessoas desprotegidas e desprovidas de esperança." Confira na íntegra a resenha escrita pelo crítico carioca Fernando Py sobre "Sombras Sobre a Terra"(texto publicado originalmente na "Tribuna de Petrópolis", Rio de Janeiro, em 09.12.2016)
Um autor fundamental para a literatura uruguaia do século passado, Francisco Espínola (1901-1973) estranhamente era ainda inédito fora do país natal. Agora essa condição foi rompida com a publicação de seu grande romance Sombras sobre a terra (Taubaté: LetraSelvagem, 2016; tradução e notas de Erorci Santana; prólogo da terceira edição urugauaia por Alberto Zum Felde; prefácio do ensaísta uruguaio Leonardo Garet; "orelhas" de Ronaldo Cagiano e nota do editor Nicodemos Sena). Sombras sobre a terra possui um valor irrecusável de análise social e extraordinário alcance existencial.
O romance trata da vida e das ligações humanas nas casas noturnas e bordéis. O personagem principal é Juan Carlos, órfão de pai assassinado e mãe que morreu tuberculosa. Vivendo num casarão aos cuidados de uma negra, cresce na zona meretrícia do Baixo, no meio de prostitutas, cafetões e outros marginais. E é ali que o rapaz encontra proteção e se refugia do mundo, conhecendo o amor.
Entretanto, o romance não tem um enredo próprio: é composto de vários episódios que na verdade formam aspectos do jeito de ser da vida de pessoas que percorrem aquela espécie de anti-mundo, um universo de horror e miséria. Contudo, a prostitutas são essencialmente humanas, e mesmo os homens que vivem do ofício delas não apresentam crueldade nem vileza, são apenas pessoas apaixonadas pelas suas amantes. Talvez por isso, o autor, ao contrário do que se poderia esperar, não exibe cenas eróticas eróticas de amor tórrido. Existe algum desencanto nas cenas de um bordel em que sempre haverá um cantor de tangos e demais melodias típicas. E sempre aparece um lamento acerca do destino dessa vida à margem da sociedade, uma espécie de preparação para a morte. Porém, apesar de ser um romance realista, Sombras sobre a terra mostra ao leitor, no seu background poético, um sentimento íntimo de solidariedade para com as pessoas desprotegidas e desprovidas de esperança.
Por outro lado, podemos verificar que a história toda se passa num ambiente de sombras e seres noturnos, ambiente que se entranha nas personagens e torna mais escuras ainda as criaturas criadas por Espínola. Juan Carlos possui uma amante, a Nena, e ela lhe configura a mãe morta. Vemos, por fim, que ele não tem um destino: o romance deixa em aberto o final da narrativa e não sabemos qual o destino de Juan Carlos. Nena sente a forte possibilidade da separação dos dois quando, durante seu último encontro, num passeio pelo rio, grita o nome do amado e o eco não lhe responde. Terá Juan Carlos morrido ou simplesmente se afastado do Baixo? Seja como for, Sombras sobre a terra é uma obra que merece uma leitura interessada, e sobre a qual convém meditar.
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*Fernando Py é poeta, crítico literário e tradutor brasileiro. Traduziu para o portruguês a monumental obra proustiana Em Busca do Tempo Perdido (Ed. Ediouro, 2002, RJ)