Refinado e sofisticadíssimo, aprovado por outros críticos como Benedito Nunes (1929-2011), Moacir Amâncio, Oscar D´Ambrosio, Nelly Novaes Coelho e Carlos Menezes, no Brasil, e Manuel de Freitas e António Cabrita, em Portugal, Cecim constrói há quatro décadas uma obra multifacetada e marcada pela presença da natureza, com a Amazônia transfigurada na região metafísica de Andara, um Éden amazônico e suas alegorias. (Resenha publicada originalmente no portal do "Pravda", 08.09.2016). Confira a seguir
Apontado pela crítica portuguesa como o segundo melhor lançamento de 2005, o livro K O escuro da semente,
do poeta brasileiro Vicente Franz Cecim (1944), sai agora no Brasil
pela editora Letra Selvagem, de Taubaté, em versão transcriada que deixa
um pouco desatualizada a edição portuguesa. Na época, o seu autor foi
saudado por Eduardo Prado Coelho (1944-2007) no jornal Público, de
Lisboa, como "uma revelação extraordinária". Quem conheceu Prado Coelho
sabe que era preciso muito para arrancar daquele professor, crítico e
ensaísta um elogio tão desmedido.
Talvez por isso Cecim seja hoje mais conhecido em Portugal do que no Brasil. Assim, este lançamento da LetraSelvagem,
de certo modo, vem corrigir essa injustiça, já que, por um desses
paradoxos brasileiros, o poeta ainda é quase um desconhecido, embora
seja vasta a sua fortuna crítica e grande o número de resenhas de seus
livros publicadas em jornais e revistas.
Aliás, em artigo
publicado no "Jornal da Tarde", de São Paulo, em 31/1/1981, o grande
crítico Leo Gilson Ribeiro (1929-2007), ao resenhar os dois primeiros
livros do jovem Cecim - A asa e a serpente e Os animais da terra
-, publicados em Belém, em edições de autor, já o colocava como um
importante escritor da geração pós-1964, ao lado Raduan Nassar, João
Gilberto Noll, Mora Fuentes (1951-2009) e Carlos Emílio Correa Lima.
Ribeiro destacava que em A asa da serpente Cecim abordava um tema caro a
Jorge Luis Borges (1899-1986), o de um homem que consegue o direito a
uma segunda morte, já que a primeira havia sido a de um covarde.
Refinado
e sofisticadíssimo, aprovado por outros críticos como Benedito Nunes
(1929-2011), Moacir Amâncio, Oscar D'Ambrosio, Nelly Novaes Coelho e
Carlos Menezes, no Brasil, e Manuel de Freitas e António Cabrita, em
Portugal, Cecim constrói há quatro décadas uma obra multifacetada e
marcada pela presença da natureza, com a Amazônia transfigurada na
região metafísica de Andara, um Éden amazônico e suas alegorias.
K O escuro da semente é mais um daqueles livros que o autor chama de "visíveis" e reúne na obra imaginária Viagem a Andara oO livro invisível,
que não escreve e só existe na alusão de um título. É o que o poeta
denomina de "literatura-fantasma", em que foge a uma classificação
formal, pois não se sabe se se trata de um romance escrito em prosa
poética ou de um longo poema em prosa, mas sim de um gênero híbrido, que
absorve todos, constituindo um diálogo entre Pai e Filho ou entre
irmãos, como Iziel e Azael e Oniro e Orino. É também o seu primeiro
livro em iconescritura, pois une imagens e palavras.
De difícil
leitura e definição, ao menos para aqueles leitores pouco afeitos à
poesia menos convencional, o estilo de Cecim lembra a inquietação
existencial de Samuel Beckett (1906-1989), Thomas Stearns Eliot
(1888-1965), Ezra Pound (1885-1972) e Franz Kafka (1883-1924), passando
ainda por Lautréamont (1846-1870), especialmente o de Os Cantos de Maldoror, e Zaratustra (660-583 a.C). Não é pouco.
É o que se pode constatar no capítulo (?) "Da voz de Areia Lenta" (pag. 67-68):
Eis:
a história:/ - E cada um possui a todos dentro de si e vê em outro a
todos, e tudo é tudo e cada um é tudo/ e cada um é tudo/ e o Fulgor é
imenso, / pois cada um deles é grande,/ pois também o pequeno é grande/
Lá o sol é todos os sóis/ E cada sol é sol e todos os sóis/ Tendo nos
dito isso, e o Fulgor é imenso,/ Plotino, pois fosse sua aquela Voz em
chamas. / - É? Nos perguntamos. E cada um possui a todos dentro de si. /
Mas de onde vem então esse vento, em Andara, que diz:/ - Um animal é
uma falta de tudo para sempre./Vem de páginas passadas em Andara,
virando páginas passadas de Andara./ É sempre em Andara que esses ventos
vêm soprar, e esse quis soprar aqui de novo./ Ei-lo. Dizendo, esse
vento/ O que um dia já foi dito por Iziel a Azael nessas páginas
passadas/ Está lá, no livro que um dia se chamou Silencioso como o Paraíso após a expulsão das criaturas humanas, essa página passada./ Que diz, seu eco ainda nos chegando/ Vem lá do Paraíso (....).
Na
apresentação que escreveu para este livro, António Cabrita, romancista e
ensaísta português que vive em Moçambique desde 2005, diz que Cecim
escreve sempre o mesmo livro sob um novo ângulo, "numa busca do que é
mais conforme à fonte". E acrescenta: "as figuras, os topoi, as
metáforas que se apresentam neste longo poema já estão presentes nos
anteriores". Por isso, diz, K O escuro da semente ergue-se então
como um novo andamento na sinfonia". Não é preciso dizer mais. Só resta,
então, ao leitor buscar este livro. E tentar decifrar o enigma.
Vicente
Franz Cecim, jornalista e publicitário, nasceu em Belém do Pará, onde
vive até hoje. Seus avós paternos eram libaneses e italianos que
imigraram para a Amazônia no início do século XX. Da mãe brasileira,
paraense nascida em Santarém, a escritora Yara Cecim (1916-2009), o
escritor herdou o gosto pelo mundo natural.
Em 1979, com A asa e a serpente, teve início a sua obra imaginária Viagem a Andara oOlivro invisível,
transfiguração da Amazônia em região-metáfora da vida em que natural e
sobrenatural convivem de maneira harmoniosa e mútua epifania. Em 1980,
recebeu o prêmio Revelação de Autor da Associação Paulista de Críticos
de Artes (Apca), por sua segunda obra, Os animais da terra. Em 1981, A noite do Curau, primeira versão do terceiro livro de Andara, Os jardins e a noite,
recebeu menção especial do Prêmio Plural, no México. Em 1983, durante o
Congresso da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC),
em Belém, o escritor fez um apelo à insurreição da Amazônia em seu
"Manifesto Curau".
Ao longo dos sete primeiros livros do ciclo de
Andara, prosseguiu abolindo as fronteiras entre prosa e poesia.
Publicados inicialmente pela Editora Iluminuras, de São Paulo, no volume
Viagem a Andara, os livros receberam, em 1988, o Grande Prêmio
da Crítica da APCA, que na década de 1980 seria somente atribuído também
a Hilda Hilst (1930-2004), Cora Coralina (1889-1985) e Mário Quintana
(1906-1994) e, na seguinte, a Manoel de Barros (1916-2014).
Em 1995, publicou Silencioso como o Paraíso
(São Paulo, Iluminuras), reunindo mais quatro "livros visíveis" de
Andara. Em 2001, quando a invenção Andara completava 22 anos, publicou Ó Serdespanto,
pela Íman Edições, de Almada, com dois novos livros de Andara, apontado
pela crítica portuguesa como o segundo melhor lançamento do ano. Livro
duplo, em que a palavra cada vez mais aprofunda o seu diálogo com o
silêncio, foi reeditado em 2006 pela Bertrand Brasil.
Em 2004, relançou as versões finais, transcriadas, os sete primeiros livros de Andara reunidos nos volumes A asa e a serpente e a Terra da sombra e do não (Belém, Cejup). Em 2005, publicou o seu primeiro livro em Portugal, K O escuro da semente (Maia, Ver o Verso), então inédito no Brasil.
Em 2008, lançou pela Tessitura, de Belo Horizonte: oÓ: Desnutrir a pedra.
Nesta obra, aprofunda sua demanda de uma nova escritura, mesclando
palavra, silêncio da página em branco e imagem. Segundo ele, durante
esses anos todos, Andara lhe desvelou que "o natural é sobrenatural, o
sobrenatural é natural."
Em 2009, a invenção de Andara atingiu 30
anos de criação. Nesse ano, saiu encartado no volume Do abismo às
montanhas (Seminários Internacionais Vale) seu livro de cantos/poemas de
Andara, Fonte dos que dormem. Em 2014, lançou Breve é a febre da terra (Belém, IAP, Prêmio Haroldo Maranhão de Romance). Atualmente, escreve Oniá um lugar cintilante, "um novo livro visível".
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* Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de Os vira-latas da madrugada (Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1981; Taubaté, LetraSelvagem, 2015), Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage - o perfil perdido (Lisboa, Caminho, 2003), Tomás Antônio Gonzaga (Academia Brasileira de Letras/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2012), e Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2015), entre outros.