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Críticas

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Uma literatrura a salvo de modismos
Página publicada em: 22/03/2013
Alfredo Monte
"Diário de um médico louco" nos insere no coração de uma linhagem criativa que propõe o mais doloroso e profundo diagnóstico das fraturas da condição humana" (Obs: Versão condensada desta resenha foi publicada em "A Tribuna", de Santos, 27/11/2012)
Pensei muito no que poderia escrever a respeito da experiência da leitura de Diário de um médico louco que não fosse a óbvia vinculação a uma certa linhagem na ficção cujo protótipo encontramos em Diário de um louco (1835), de Gógol [1]: trata-se do discurso de alguém que já não distingue o que é realidade ou delírio, um discurso desassossegante porque deixa entrever que toda noção de realidade, no final das contas, não passa de uma ficção. É o reino de Poe, Dostoiévski, Hoffmann, Robert Walser, entre outros, além do já referido e paradigmático Gógol.
Como inserir o romance de Edson Amâncio na ficção brasileira atual, ainda mais quando ele utiliza o recurso consagrado, mas algo anacrônico (a não ser que seja retomado de forma paródica), tão século XIX, de um primeiro narrador apresentar-se como depositário do diário do colega, que desaparecera?
 
Lembrei, então, de Tólia, conto de Ricardo Lísias publicado na GRANTA dedicada aos melhores jovens escritores brasileiros, em que o narrador (chamado Ricardo Lísias) desiste de todos os seus investimentos existenciais (o xadrez, a literatura) e, na Rússia, se junta a uma comunidade mística,  dedicada ao silêncio radical e à reunião de Mestres dispersos pelo planeta, que possam levar a humanidade a outro estágio de evolução.
 
Tólia faz parte de um recente ciclo na obra de Lísias (ao qual pertencem também os contos Meus três Marcelos, Evo Morales e o romance O céu dos suicidas), que tem como tema recorrente as experiências “malucas” e dissociativas de um protagonista homônimo (o qual se encontra um tanto quanto “surtado”) do autor. E é uma ótima amostra de uma prática que anda muito em voga, a autoficção: experiências pessoais deformadas e reformatadas, criando um universo movediço, um terreno pouco firme (típico da pós-modernidade), onde o leitor perde a noção do que é fato e do que é forjado, “fingido” na vida do autor-personagem em questão[2].
Posso me arriscar a arrolar Diário de um médico louco também nessa linha, com a ressalva de que o narrador (chamado simplesmente Dr. B.) não tem, como nos casos mais exemplares da autoficção, o nome do autor. Faço essa alegação porque, sem dúvida, ali estão experiências vividas biograficamente (viagens a Paris e à Rússia, por exemplo; aliás, a pátria de Dostoiévski, como acontece em Tólia, ocupa largo espaço no romance: “Pela primeira vez eu viajava com quem chega a um lar durante muito tempo abandonado. Eu não era um turista, nem mesmo um simples viajante. Eu era um russo. Eu estava de volta à casa…”), com as quais ele joga de forma a desconstruí-las, ao contá-las sob o ângulo da consciência alterada e disfuncional (ao mesmo tempo, não se vexando em se valer de um topos literários já cristalizado no imaginário do leitor ocidental): “..quando fui tomado de uma estranha sensação que já se apoderou de mim em outras ocasiões. É como seu eu estivesse vivendo outra vida, como se não fosse eu que estivesse presente ali naquele quarto, e um impostor tivesse se apoderado do meu espaço e do meu próprio ser. Naqueles poucos segundos transportei-me para os lugares mais recônditos de Petersburgo, aqueles lugarzinhos que eu já havia visitado de outras vezes, becos escuros onde se escondem os pequenos demônios russos, escadarias imundas e malcheirosas, por onde circulam bêbados e as mais disformes criaturas do submundo…”
 
A lógica que guia o percurso narrativo está contida na seguinte passagem: “… eu não me esquecia de como utilizar meu endoscópio, mas era incapaz de encontrá-lo quando precisava.”
Médico em Santos, o Dr. B. narra como a vontade de suicidar-se foi se inoculando em seu ser. Como tantos anti-heróis literários, ele também é visitado pelo diabo, e no ir-e-vir não muito cronológico e linear de seu diário, e em todas as anedotas biográficas (por exemplo, em Paris, é acometido pela tentação de roubar um desconhecido que sacara alta quantia no banco, e repassa cada giro mental — até atingir a ideia de latrocínio — a partir do impulso original, naquela mistura tão típica de método e racionalidade com estado-limite da mente), ele sente a presença zombeteira dessa entidade, instigando-o e espicaçando-o: “Já lhes falei que o Mestre me visitou certo dia (os russos o chamam assim). Isso mesmo, o demo em pessoa (…) Vejam a que ponto cheguei. Em poucos segundos vocês começam a imaginar que sinto falta dele. Explico melhor. Antes de tudo, é uma criatura sem travas na língua. Um conversador nato. Nada de monossílabos, como estamos hoje acostumados. A  pessoa acomoda-se diante de você e não abre a boca. Ninguém mais sabe conversar…”
                                     
Portanto, Edson Amâncio poderia se gabar de ver seu romance associado a duas práticas recorrentes entre os “melhores” escritores jovens, e em vários deles (não é o caso de Lísias decerto) , tomadas como se fossem a reinvenção da roda: além da autoficção, a intertextualidade. O que diferencia abissalmente Diário de um médico louco é que justamente o mergulho que nos proporciona na literatura (pois o Dr. B. é useiro e vezeiro na citação de autores) revela-se antípoda à usual complacência dos praticantes desse jogo metaficcional: pois ele nos insere no coração de uma linhagem criativa que propõe o mais doloroso e profundo diagnóstico das fraturas da condição humana, da situação aberrante de sermos criaturas tão racionais e ao mesmo tempo presas de instintos primitivos, de pulsões destrutivas e derrisórias. É o ato de escrever conforme caracterizado por Pedro Meira Monteiro: “A escrita nunca é liberação. Quando escrevemos selamos acordos com uma corte de demônios que mal conhecemos”.
 
E o uso de um alter ego negativo, o Dr. B, aponta justamente para o lado “saudável” da literatura: enquanto todo o universo da loucura, da fragmentação do ser, das dicotomias dilacerantes, aponta para o caos, para a ausência de sentido, o discurso literário—mesmo passando a pente fino toda essa realidade lancinante — é ainda a ordem, a coerência, a possibilidade de um “remate de males”, no mínimo.
 
Ricardo Lísias (o personagem) e o Dr. B. perdem a partida contra a realidade, e mergulham no autoengano da loucura, procurando suavizar o estado de vexame existencial em que estavam mergulhados, como não-participantes funcionais do sistema social. Ricardo Lísias (o autor) e Edson Amâncio nos proporcionam, paradoxalmente, a sensação de que a literatura ainda é um muro de contenção contra o caótico e o dissolvente.
 
ANEXO 1- TRECHOS SELECIONADOS DO DIÁRIO DE UM MÉDICO LOUCO:
“… já na minha infância fui tomado por estranhos pressentimentos e muitas vezes chamado de habitante ´do mundo da lua´. De tal forma era envolvido por êxtases e arrebatamento da alma que me perguntava se não estaria vivendo um sonho. Que tipo de sortilégio me dominava o espírito ainda na minha mais tenra infância! Meus pais, cujo equilíbrio mental está exageradamente distante de exemplar, levaram-me aos curandeiros da vizinhança e um deles me faz passar a mais terrível experiência que uma criança é capaz de suportar. Colocaram-me nu, sentado no chão, coberto de folhas de bananeira de uma cabana e despejaram sobre a minha cabeça o sangue ainda quente de uma galinha esgorjada…”
 
“Voltei do banco onde tive uma curiosa entrevista com o gerente.
Ele disse que não havia saldo em minha conta. Exigi explicações (…)
__ Não há um único depósito na sua conta desde dezembro do ano passado.
__ Por que dezembro?-eu disse.
__ Ué! Sei lá!-respondeu.
Pensei cá com meus botões: Esse sujeito está querendo me enrolar ou não passa de um biruta (…)
__ Dezembro é o mês do Natal, é ou não é?
__ Sim…
__ Acontece que no Natal costumo dar presentes. Vê se acompanha o meu raciocínio — falei pedagogicamente, já a ponto de perder as estribeiras.
__ Hum…-ele resmungou.
__ Pois bem- continuei- Se é Natal, e costumo dar presentes, é claro que tem de haver — acentuei o tem de haver- saldo em minha conta!
__ Sim- disse ele, e desta vez sorriu.- Desde que o senhor deposite alguma coisa.
__ Como assim? (Eu já estava além do meu limite—de paciência).
__ Simples- ele retrucou.-Basta o senhor colocar o dinheiro em sua conta. Dessa forma, poderá gastá-lo com presentes ou com o que for.
  Ora essa! Depositar em conta! Veja só…”
 
“Termino-a (a vida, é claro!) muito melhor do que comecei. Hoje tenho meu endoscópio e uma profissão digna, nenhuma sinecura—rejeitei todas que se estenderam diante de mim. Vivo só, isso é verdade e lhes daria de presente mais um clichê, se não fosse abusivo e não quero parecer autoritário. Mas seja, vá lá: às vezes é melhor só. Agora, penso eu, devo voltar à análise do primeiro motivo verdadeiro que me levou inexoravelmente a essa estória do suicídio. É uma estoriazinha, não mais do que meia dúzia de linhas. Ei-la: eu vinha caminhando pela rua, o pensamento imerso nesse mar de questões que tenho levantado desde que completei 65 anos—curioso: faz exatamente 3 anos, 4 dias e 2 horas que os completei. Depois disso, não tive mais sossego. É como se aos 65 anos tivesse ocorrido na minha vida um divisor de águas. Algo assim: Pois bem, agora vai ser diferente. Vamos ao que verdadeiramente interessa: o suicídio! Dessa data em diante, não parei de pensar ´no assunto´. Sei que os aborreço com essas longas introduções e interrupções, mas me declaro incapaz de fazer de outra maneira. Vejamos. Eu, como já dizia, vinha caminhando. Ao passar por uma janela aberta, alguém, uma criatura da pior catadura possível, disparou uma cusparada. O míssil, se posso assim me expressar, por pouco não me atingiu em cheio, no rosto. Apenas um passo mais acelerado e isso fatalmente não teria acontecido. Mas, felizmente, aquilo me atingiu no ombro esquerdo. Eu havia olhado para o interior daquele cômodo miserável, onde pessoas trabalhavam, por mera curiosidade. Depois entendi que naquele  quarto de subúrbio funcionava uma alfaiataria. O alfaiate, ao perceber que a cusparada havia me atingido, ficou paralisado, ainda com uma das mãos suspensas no ar para limpar os últimos resíduos de umidade nos lábios. Eu, de minha parte, também estaquei na calçada. Aquilo era demais. Vocês estarão loucos para saber como reagi, não é? Pois bem, imaginem-se, portanto, numa situação semelhante. Isso os possibilitará ter uma ideia do que aconteceu a seguir. Eis aí o cerne da questão…”
 
_____________
*Alfredo Monte

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Autor

» Leandro Carlos Esteves

Leandro Carlos Esteves nasceu na pequena cidade de Lins, no oeste do Estado de São Paulo, em 19.11.1960. Em 1977, veio para São Paulo, onde se forma em Jornalismo, pela PUC (Pontifícia Universidade Católica). Cursou a Faculdade de História, com ênfase em métodos e pesquisa histórica, Antiga, Medieval e História do Brasil tanto na PUC quanto na Universidade de São Paulo (USP) onde também estudou filosofia.

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