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"Selva Trágica": o romance social que consagrou Hernâni Donato
Página publicada em: 17/02/2012
Silas Corrêa Leite
"A literatura como revelação é isso: um baita romance de porte e estatura social". É esta a avaliação que Silas Corrêa Leite faz do clássico romance de Hernâni Donato reeditado pela LetraSelvagem
 
“...quem somos nós, auto-intitulados
humanos, senão meros cavalos passando
de mão em mão e servindo como veículos
para que a vida possa escorrer por meio
de nossas existências? – Roberto Damatta
 
 
A exploração de minas agrestes de erva-mate na fronteira entre o Brasil (Mato Grosso) e o Paraguai, historicamente poderia implicar num desenvolvimento de área geográfica importante para o Brasil, mas, e por isso mesmo, como sempre, com tantas mazelas e improbidades no meio, feito um espetacular romance-documento (que virou filme de renome), que assim e por isso mesmo rendeu um belíssimo romance social criado por um dos nossos melhores literatos de todos os tempos, Hernâni Donato. Publicado primeiramente em 1956, Selva Trágica tornou-se logo um sucesso e consagrou o autor; todavia, há trinta anos a quarta edição do romance esgotou-se e o livro ficou ausente das prateleiras das livrarias, mas agora é relançado pela LetraSelvagem, de Taubaté-SP.
 
A vida (vida?) de uns tantos seres miseráveis minguando nos cafundós desses antigos brasis gerais, por força de uma circunstancial concessão de uso de terra com fins suspeitos, inumanos. E as personagens, tiradas do ranço da pior realidade possível, e lá vão (surgem) Flora, Pablito, Lucas, Curê, Pytã,  e outros, destilando o ranço de tempos difíceis, escoras amorais e lucros infames, injustos, impunes. E toma Isaque, Casimiro, Nakyrã e outros seres em carne viva e lidas insalubres. Será o impossível? Os cafundós do Judas. E são tantos os iscariotes!
 
Carentes submissos, usados e abusados, o sexo com mulheres inclusive casadas sendo “pagas” e trocas e moeda de cambio fácil e escambo ordinário, em núcleos de abandonos de todos os níveis. Sem alma e sem lei. A lei do mais forte não é lei. A Companhia e os vilarejos sitiados, saqueados, e os seres vilipendiados. Os esgotos humanos a partir de podres poderes que se embrenham no lucro feroz.
 
A dura realidade-vômito. O maldito furúnculo humano na cola da selva. A erva-mate como sentença e cruz. A erva-morte, portanto. A terra prometida que é o inferno indesejável e a morte escrita pelo peão labutador. Até que o uso e abuso ao extremo separe a carne do osso, o ser do não ser. Puro desmanche, o peão carcaça. Até que ponto a realidade-como-um-sinal dói na alma dos que ficam?
 
Hernâni Donato foi precioso e preciso. Nem realismo sendo realista, e nem regionalismo sendo regional de uma senda frutífera: a própria divisa. Como o próprio geográfico cenário lusolatino de Selva Trágica.  Não só a triste “sulamérica latina em pó” como cantou Caetano, mas a dita América sulatina em erva. A imersão na dura/triste realidade do cotidiano em palcos de brucutus caboclos, rudes, sonhadores, rendeiros: a dura subsobrevivência dói. As propriedades dos injustos, a injustiça dos capatazes e afins, os donos do abandono. No rodeio das explorações, torciam para a senhora Dona Morte, coberta de erva-mate. A morte-folhuda. A pobreza e a exploração do homem pelo homem. O estado ausente. O progresso e seu preço a pagar em estágios primitivos de escambos pra baixo. O colonião dos miseráveis, de matadores de aluguel, de achacadores, de subescravos, de prostitutas. A morte como preço e honra funesta. O bicho homem virando um bicho transvirado. A vida sem preço nenhum, valendo nadica de nada. Deusolivre!
 
Bem enredado, o romance vai pondo janelas cênicas no olhar estupefato do leitor, dizendo de acontecências e agonias. Tudo a ler. O estábulo sendo um lugar comum de homens e bichos. Aqui e ali, amor e dor, aqui e ali, miséria e medo, aqui e ali a erva maldita e o ranço da dívida sempre impaga por peões marcados para trabalhar até morrer. Já pensou? O amor impossível virando paixão, e o proibido virando desejo, e o desejo tornando o homem cabresto do homem. Mundão sem porteira parindo erranças.
 
O trágico da selva é o lucro a qualquer custo, a todo preço. A vida vale o labor, mais nada. Ninguém tem onde cair morto.  Ninguém é de ninguém. A Companhia é Deus, é Ordem e Progresso, é tudo. A erva que embrutece, inumaniza, corrói, destila; esterco de sofrências. Todos na rudeza do entorno. Cada um por si e salve-se quem puder. O revolver-bíblia. A procissão de lazarentos. E igreja-nódoa, a cruz sistêmica da rotina voraz. Os miseráveis de sempre, desde Alexandre Dumas ou Vitor Hugo. O país nenhum. Terra de excluídos. Não há misericórdia. Morrer é que é o verdadeiro sinal da besta para ser livre. Hernâni Donato pintou dezelos e aberrações. A terra marcada a ferro e fogo. O desvario. O domínio do medo e do rancor. A vingança como arapuca de caráter. A mulher, qualquer mulher, objeto e submissão. O lugar nenhum da sobrevivência possível. Almas-charques.
 
Um romance épico. O historiador dando-se num distanciamento todo peculiar e todo próprio de seu estilo, revelando o ovo da serpente da própria história-remorso. Cruz e credo. O jogo do domínio-lucro, o peso do poder lancinante, o louco lucro selvagem do pouco humanus revelado às pencas, em janelas cênicas de estados atrozes, angustias e impurezas, jogos e feições de, dores, seqüelas, purgações. Não é sempre assim?
 
E o rico repertório de palavras novas, ricas, peculiares, típicas da zona do romance, próprias do local, empoleirando terras devolutas, dizeres ricos, e arrebentações de português, o tupi-guarani e o espanhol de fronteira. Palavras como embaguaris, tapês-guaçu, biriguis, pindó, sapeco, atacador, arrias, taroba, e outras tantas preciosidades, num vareio de dizeres e sabenças. E mais: terra de ninguém em que um quase alguma coisa manda e desmanda, e os outros “ninguéns” obedecendo cegamente, sob o tacão do povoado, usos e costumes, lendas e interpretações do tal olho por olho e dente por dente, mas só para os manés de sempre. Vida de gado? Que lugar é esse, Santo Deus?. O próprio nome de Deus assacado em vão. Hernâni Donato foi buscar fatos e acontecências. Chocou. A literatura como revelação é isso: um baita romance de porte e estatura social. O buraco é mais embaixo.
 
Gustave Flaubert dizia que “o estilo está tanto nas palavras como dentro delas. É igualmente a alma e a carne de uma obra”. Hernani Donato com sua obra Selva Trágica escreveu o melhor da literatura dessa gente pobre brasileirinha de um tempo, um canto e sem um lugar para chamar de seu. Acertou no palavrear a pequenez humana, a sordidez do lucro, e a grandeza dos que remavam contra a maré, dando voz a sem vozes entre sem terra e sem justiça. Que país é esse?
 
O amor e a dor, tudo nu e cru. No pântano da condição humana, o esterco das relações conspurcadas, desonrando o homem, a sociedade, a relação capital-trabalho (escravo). Selva Trágica é exatamente isso. A nudez do inadmissível, mas que ocorreu, ocorre. O poder que co/rompe e o abatido não se enxerga mais. Dói saber. Dói ler. A história de como colapso humano, ambiente hostil; de um Brasil do tempo da onça. Escrever torna o incrível possível de ser assentado, conhecido, até provocar indignação, claro.
 
A erva-mate como mote de morte. A erva mate literalmente cevada, surrada, decomposta, triturada, matando direta e indiretamente no entorno e entrementes. A marginália do lucro especulando o poder a custa de balas, os descamisados remando contra a maré, sem chance de fuga, marcados para morrer, sem saída humanamente possível. Um romance feito com a carne do homem desesperado e perdido, e o espírito de poucos, que Hernani Donato fez assim único e brilhante.
 
Um romance feito a cara e a coragem do homem caboclão, a alma do cusarruim e o espírito de um escolhido, marcado para ver, saber, escrever, sentir, pensar, contar. O romance é sim um histórico contundente, e por isso mesmo dolorosamente muito triste, arrojado ainda que, realisticamente rico, falando de um desviver, no subviver do quase. Ainda bem que a gente vive para ler um grande livro assim, e a vida criou um ser humano sensível para criá-lo, senti-lo, tocá-lo, fundá-lo na nossa história-remorso de brasilidade de sargaços até os tempos atuais em que pouco se sabe a quantas anda a ética nas relações profissionais, desde esses remotos tempos tenebrosos.
 
E o texto denso, salpicando de conhecenças o grotão-cenário, o chão-do-palavrear:
 
Todos os anos é assim. Eles dizem aquilo e sentem aquilo. E ao fim da safra, feitas as contas, todo ano foi bom e foi ruim. O importante é estar vivo e ter forças. O vento morno e cheiroso há de voltar, empurrando os homens para o mato, no rumo das minas (de erva-mate). Cada vez mais para o fundo da selva (...) (pág. 214).
 
Pude ler e transler Selva Trágica. Encanto de mosaico de palavras, narrativa sedutora, caudaloso contar e profundo conhecimento de oficio de. Ideias e fermentos nos contextos. Um livro aberto é isso, amplo e importante. As vezes parece que incabe em nós, saradinhos de um consumismo que aliena e nos põem cincerros como i-pods e tablets-i-pods-mp-tantos. Um dos melhores romances que li. E então em nós rompe uma realidade latente. E uma obra clássica como um símbolo. De resistência até. Sobreviver é preciso. Escrever é dar curso a isso de saber o real que não conhecemos de perto. E ainda dói saber de tantos “urus” de fornos carvoeiros e de outros fornos da vida com ervas e identidades desconformizadas.
 
Ah,  o sertanejo vilipendiado naquilo mais tem de seu: a braveza pura de produzir para a subsistência possível, em pagos alhures. A história-coice e a memória-cascavel. Historial-lampião, luzindo sobre sombras e escuridões, contando de venenos humanos. Como Grande Sertão Veredas, Incidente em Antares; como A Espera do Nunca Mais, ou mesmo Invenção de Onira, como  Vidas Secas ou Dom Casmurro, não dá para ler Selva Trágica e passar batido, passar incólume, imune. Os urubus são os outros? Palafitas da insensibilidade buscam finca-pés para nossas tantas outras correntezas, de tantos outros navios negreiros a deriva de nós mesmos na selva (de medo e comodismo) do dezelo público, dezelo humano. A correnteza do lucro tem tantos nomes. O inferno verde do ouro verde que são as ervas, e o lucro literalmente saindo pelo ladrão, expropriando almas perdidas.
 
Um livro que honra a nossa melhor literatura, dos horrores da visão do verbo contar, romancear. Só há horror no esquecimento. No contar há a galhardia de um clarão de realidade, por mais dura que seja. Almas turvas escondem o poço seco dos aban/donos. Almas brilhantes contam com sangue nos olhos. Hernâni Donato foi consagrado com SELVA TRÁGICA!
 
______________
Silas Correa Leite, teórico da Comunicação e escritor; autor, entre outros, de Porta-lapsos e Cavalos Selvagens (no prelo)

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Autor

» Adelto Gonçalves

Jornalista com passagem em alguns dos maiores órgãos da Imprensa de São Paulo, professor univeresitário com doutorado pela USP (Univesidade de São Paulo), especialista em Literatura Portuguesa e Espanhola, autor de ensaios premiados, é também excelente ficcionista, como se pode comprovar neste romance "Os vira-latas da madrugada", um dos livros premiados, em 1980, no concurso de âmbito nacional promovido pela Livraria José Olympio Editora, que o lançou em 1981, e, trinta e quatro anos depois, é reeditado pela LetraSelvagem. "Adelto Gonçalves tem o dom de fazer viver suas personagens, convencendo o leitor de seu valor humano, mesmo quando suas ações, como as de Pingola e Quirino, lhe repugnem", escreveu Maria Angélica Guimarães Lopes, professora emérita da Universidade South Carolina, em resenha publicada na "Revista Iberoamericana", do Instituto Internacional de Literatura Iberoamericana, Universidade de Pittsburg, EUA, janeiro de 1985.

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