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Críticas

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Para além da 'realidade'
Página publicada em: 25/03/2010
Rodrigo Felix da Cruz
“A Noite é dos Pássaros”, de Nicodemos Sena, e a arte de recriar a realidade por meio da pesquisa
“O Segredo da Verdade é o seguinte: não existem fatos, só existem histórias.” (p. 14)
 
Aristóteles ensinou que em arte nada se cria, tudo se emula. A arte tem a função de compilar os dados da realidade encenando-os livremente com criatividade, fantasia e sonho. Sobre a emulação Aristóteles postulou duas faces, a ‘mimesis’ e a ‘diegesis’. ‘Mimesis’ é a representação do real através da arte pela simulação. ‘Diegesis’ é a narração/encenação na qual o autor apresenta ao leitor sua expressão e criatividade. ‘Diegesis’ é o contar e ‘mimesis’ o agir.
 
Segundo romance do consagrado escritor Nicodemos Sena, A Noite é dos Pássaros (Belém, PA, ed. Cejup, 2003) narra o cativeiro do naturalista Alexandre Rodrigo Ferreira pelos temidos índios tupinambás, famosos pela prática do canibalismo. Durante seu cativeiro, Alexandre recebe de seus anfitriões como companhia um livro de autoria de outro naturalista – Hans Staden – que também foi  prisioneiro dos índios tupinambás. Neste livro, Hans narra suas experiências entre os índios até o dia em que por pouco não se torna seu alimento.
 
Ultimamente, quando as mãos assim não se ocupam, seguram um velho e carunchento livro que veio dar em terra depois do naufrágio dum patacho português, e que os índios, não vendo nele qualquer utilidade, entregaram-me. Já o li tantas vezes que conheço de revestrés o seu conteúdo, reinventando as páginas extraviadas sem precisar usar toda a minha imaginação, uma vez que o livro traz uma história coma minha bem parecida. (p.13/14)
 
Alexandre identifica-se com esse livro, pois vive a mesma situação. Além do livro, recebe como companheira a bela índia Potira, que possui a missão de engordá-lo para o  esperado banquete indígena.  Daí por diante o naturalista passa por momentos angustiantes até o desfecho de seu drama.
 
Vou assim refletindo quando Potira surge de repente na porta da cabana. Tem os pés tão delicados que pode andar na areia sem se denunciar; tem o corpo tão leve como a brisa sutil que resvala por entre a ramagem sem murmurejar. “Potira?!”, exclamo. “Ixé, oguerur tembiú” (sou eu, trouxe comida para ti), diz a cunhantã, depositando no chão as coisas que trouxera. “Marãnamope ereiur?” (por que vieste?), indago. Será ela a prometida esposa? “Potira our muambagura reroqué” (Potira veio fazer dormir consigo o prisioneiro). “Nde remirecoramo secouné” (serei tua esposa), responde, terminando de arrumar as coisas no chão. (p. 30)
 
O livro, escrito em formato de  folhetim, foi primeiramente publicado no jornal “O Estado de Tapajós” (Santarém do Pará) e na revista eletrônica portuguesa “Tripov”. Suspense contínuo, mistura de tempo e espaço, e  enredos em células, gradualmente posicionadas como atos de uma peça de teatro, são características determinantes desse gênero presentes na obra.  Sena explora com maestria o compasso entre ‘mimesis’ e ‘diegesis’ dentro da concepção aristotélica.
 
A Noite é dos Pássaros não é uma simples história de amor entre Alexandre e Potira. Além de construir essas duas personagens complexas, o autor trabalha o choque entre culturas e identidades, o conflito entre fé e desilusão, o ciclo hedonista (busca do prazer) e o sonho. Dessa forma, essas personagens são colocadas acima das personagens arquetípicas que ocupam o segundo escalão da narrativa.
 
Alexandre e Potira fazem o ‘mise en scène’  (atuação) de tais conflitos em uma sinfonia afinada, na qual a  ‘mimesis’ e ‘diegesis’ transformam em arte literária os usos e costumes dos tupinambás.
 
A sonoridade do português e tupi é trabalhada como forma de promover essa ‘mise en scène’, trazendo o leitor para o ambiente histórico, o que realça a beleza dessas duas línguas. É a construção mimética a partir do signo linguístico. Ao agregar conceitos e procedimentos de outros meios, pela via da simulação, o signo linguístico aproxima-se de resultados peculiares a outras formas de arte com a sonoridade musical, no caso em tela.
 
Grande melancolia se apossa de mim, ao lembrar-me de que, a cada remada dos homens, mais se aproximava meu fim. Por que há de ser assim? (p. 97)
 
“I aisó Potira” (Potira é formosa). “Nde reté, nde robá poranga” (teu corpo e teu rosto são bonitos). “I çaquenaçaua catu” (teu perfumo é bom), digo-lhe. (p. 21)
 
O autor escreve dentro da proposta da antropologia estruturalista de Levy-Strauss, na qual não existe uma hierarquia de civilizações, mas formas diferente de relações entre o ser humano, a natureza e a cultura. Strauss, para fins didáticos, separou as sociedades humanas em “frias” e “quentes”. De um lado, as sociedade “frias” (chamadas pelos povos civilizados de sociedades primitivas), que se encontram “fora da história” e se orientam  pelo modo mítico de pensar, sendo que o mito é definido como “máquina de supressão do tempo”. De outro lado, as sociedades “quentes” (civilizadas), que se movem dentro da história com ênfase no progresso, estando em constante transformação tecnológica.
 
Em A Noite é dos Pássaros a narrativa é trabalhada dentro da sistemática das sociedades “frias”, ilustrada com o modo mítico de pensar, acrescida de vários lapsos de tempo psicológico.
 
Vejo-a arrastar-me para fora da cabana, o que me fez pensar, com minha mente de passarinho, que havíamos retornado à realidade e que tudo não passara de um sonho, ou pior, de um pesadelo. (p. 103).
 
Ao abrir os olhos, tenho a cabeça sobre as coxas de Potira, que velara meu conturbado sono. Vendo-me acordar, a cunhatã faz cafuné nos meus cabelos e diz: “Xande quera porang” (Alexandre sabe dormir bonito). ( p.95)
 
Analisando a gênese da obra, consta-se que Sena é um árduo pesquisador,  cuja bagagem cultural é impressa por meio de uma intensa intertextualidade, na qual encontramos o dilálogo, por exemplo, com I-Juca Pirama de Gonçalves Dias , Essais de Montaigne, Macunaíma de Mário de Andrade, Gargantua de Rabellais, e outros. Após a realização de imensa pesquisa, o autor procede em A Noite é dos Pássaros uma verdadeira Antropofagia cultural, digerindo tais conteúdos e transformando-os em arte. Da mesma forma que os tupinambás devoravam seus notáveis inimigos acreditando incorporar a valentia destes, o autor faz isso com as obras pesquisadas, transformando-as em uma nova obra que absorve as melhores qualidades. Esta antropofagia cultural é a emulação aristotélica resultante do jogo entre a ‘mimesis’ e a ‘diegesis’.
 
A Noite é dos Pássaros  é uma obra tão fascinante que mereceu imediato reconhecimento.  Logo após sua publicação, recebeu o prêmio Lúcio Cardoso, da Academia Mineira de Letras (2003), e, um ano após, recebe também Menção Honrosa no prêmio José Lins do Rego, da União Brasileira de Escritores (UBE/RJ).
 
Deixando de lado a análise literária, compartilho minhas percepções de leitor: Torci pela sobrevivência de Alexandre, encantei-me com Potira, viajei junto com Alexandre em seus sonhos e me diverti com o conselhos de Jurupari – espécie de diabo na teogonia tupi (cuidado com tais conselhos!).
 
“E quais são as tuas leis?”, perguntaram-lhe os principais. “Eu vos enumero”, disse Jurupari: “Vingar-se dos inimigos e comer o maior número deles; guerrear sempre com as tribos vizinhas; enfeitar-se; pintar-se de preto e vermelho; deixar pernas, pintos e rapypys bem lustrozinhos; fumar paricá, sacudir o maracá e dançar, fazer feitiços; conversar com os espíritos do fundo e predizer o futuro; irar-se; trucidar gente e comer uns aos outros; pegar tapuias; amancebar-se; desejar gente; cobiçar o que é do outro; enrabar e deixar-se enrabar; alcovitar sem-vergonhice; sururucar a torto e direito; prostituir-se; fazer muita festa, batuque, bebedeira; beber cauim até ficar vomitando”. Estas são as minhas leis, que são muito belas; não quero que os índios as lancem fora, não quero que os índios as façam cessar”. ( p.42).
 
O título A Noite é dos Pássaros evocou-me o seguinte significado: a noite é o momento de repouso  em que nos deparamos com nossos medos e limitações. Dentro desse embate os pássaros representam nossos sonhos e aspirações, cujo voo alivia nossas tensões e nos motiva para seguir adiante. Alexandre, personagem-narrador desta obra,  busca nos sonhos um sentido para sua vida:
 
“Sonhar é tua sina” (p. 116)
 
Este romance é tão sedutor, que devora nossa percepção de mundo transformando-a na noite dos sonhos.
 
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*Rodrigo Felix da Cruz é Bacharel e Licenciado em Letras (Português/Francês) pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP(Universidade de São Paulo)

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