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Do sexo e da morte em Dicke
Página publicada em: 01/03/2010
Antonio Olinto
Neste texto - que serviu de prefácio à 1ª edição de "Deus de Caim", em 1968, e que reaparece na 3ª edição realizada em 2010 pela LETRASELVAGEM - o crítico Antonio Olinto analisa a linguagem de Ricardo Guilherme Dicke e o contexto em que o romance foi concebido.
Lá das bandas de Mato Grosso chega-nos agora esse estranho romancista, esse narrador sem peias, talvez ligado ao sentimento do absurdo que abala a estrutura da ficção de hoje. Eu estaria inclinado a ver, em Ricardo Guilherme Dicke, um executor marcusiano em matéria de literatura, principalmente ao surgir, como surge, numa lufada lúcida de incoerência aparente, nas letras brasileiras. Para Herbert Marcuse toda simples oposição é bem-comportada e pertence, tanto quanto a situação a que se opõe, ao contexto a que ambas pertencem. Acha ele que, diante da irracionalidade da sociedade industrial contemporânea, a única atitude certa é a de provocar a desordem nessa sociedade e contribuir, com isso, para que ela caia. A fim de atingir esse propósito, não poderá pessoa alguma assumir gesto que signifique aceitação. E oposição seria aceitação.
 
Vale a pena que se analise a afirmativa de Marcuse de que oposição é aceitação. O opor-se alguém a uma situação quer dizer concordância com o esquema geral em que ela se insere, embora discordância quanto a medidas particulares tomadas pelos que dirigem as coisas. Um partido político de oposição pertence ao mesmo contexto da situação a que ele se opõe.
 
Veja-se que, no Brasil como em qualquer outro país de tradições semelhantes, o líder da oposição no parlamento tem direito a carro oficial, motorista, gasolina, gabinete separado, da mesma forma que o líder do Governo. Aí, como em tudo o mais, a oposição aceita o poder a que ela se contrapõe. Sob esse aspecto, é insustentável a tese de partidos revolucionários legalmente registrados por um governo democrático.
 
E ela é insustentável, não do ponto de vista da democracia, que costuma adorar situações como esta, mas do ângulo dos que são revolucionários. Em todas as agitações havidas nas ruas de Paris durante a Primavera de 1968 as lideranças dos estudantes, com Daniel Cohn-Bendit à frente, revelavam seu propósito consciente de fazer, não oposição, mas desordem.
 
Suponhamos que os estudantes tivessem então fundado um partido. Todo o contexto político-partidário da França teria respirado com alívio: enfim, estavam eles, os estudantes, enquadrados no contexto. Fazendo apenas desordem, os estudantes fugiram à aceitação e desprezaram o diálogo que, para Marcuse, teria sido rendição.
 
De acordo com as ideias de Marcuse, os operários de Paris, os homens que trabalhavam no comércio, a classe média – todos eram defensores da situação tal como se apresentava, desde que se lhe mudassem alguns detalhes. Um aumento de ordenado, o direito de dias de férias – e tudo voltaria ao normal. Já para os marcusistas, não. O importante era forçar a desordem até que o poder caísse. Não foi à-toa que os operários da indústria de automóveis da França impediram a entrada de estudantes em suas fábricas: estavam, no fundo, compreendendo que os estudantes se opunham ao operariado com a mesma veemência com que tentavam combater o governo.
 
Tendo Marcuse criado toda uma filosofia de vida, podem suas ideias servir de base também a análises de caráter literário. Tanto quanto o estruturalismo de Lévy-Strauss, com a vantagem de que há, no marcusismo, uma dinâmica mais de acordo com a obra de arte. Qual seria, marcusianamente, a posição de Ricardo Guilherme Dicke na literatura brasileira de agora? A de alguém que tentasse destruir a situação literária? Até certo ponto, sim. Que ele não é bem-comportado, qualquer leitor verá logo nas primeiras palavras de Deus de Caim. O romancista não se submete a um estado definido de nossa ficção. Faz o que lhe dá na cabeça, ou nos dedos, que seu estilo parece ter sido criado e desenvolvido pelos dedos. As descrições surgem em haustos como se o narrador tivesse pressa de chegar a um ponto determinado, e sentisse que os dedos lhe doíam no esforço de trabalhar as palavras. Esse caráter digital de seu manuseio da linguagem é de uma absoluta liberdade. Daí, o poder Ricardo Guilherme Dicke opor-se, mais fundamente do que o normal, às correntes da ficção brasileira do momento. Ele não se enquadra nem se deixa enquadrar. Não quer ser apenas mais um ficcionista no meio de muitos, integrado num ambiente geral de conformismo e de seguimento das rotinas. Para Marcuse, a sociedade industrial asfixia o homem, tira-lhe a liberdade (cria uma razoável e confortável falta de liberdade) e provoca um atalho para a morte. Como vencer essa morte, esse espírito de morte intrinsecamente ligado à sociedade industrial? Apelando para Eros, para as forças eróticas de que os jovens são, naturalmente, depositários. É também com o erotismo que Dicke procura contar para se arremeter, quixoteticamente (para usar um de seus neologismos), contra a mesmice da literatura brasileira contemporânea.
 
As armas desse ficcionista não são apenas as da espontaneidade e as do absurdo, mas também as de uma tradição cultural que ele mistura e manda, numa aceitação, sim, do que o antecedeu, contudo aceitação que subverte o que aceita, que tenta lançar uma aparente desordem no que até ele chegara ordenado. A tradição é bíblica e clássica, e tanto Abel como Caim e Lázaro ingressam no mundo escuro que Ricardo Dicke levanta. Caim mata, Abel morre, Lázaro ressuscita, cada um é um símbolo e, mais do que isso, é uma criação material, direta, independente do tecido às vezes frágil do símbolo. Além disso, Bach, Beethoven, Vivaldi, Nietzsche, escritores, figuras da caminhada do homem, todos participam da subversão literária do novo romancista.
 
Lidando com toda uma simbologia a que ele dá um sopro vital fora do comum, Dicke não deixa coisa alguma de fora. Seu enredo é de vida primitiva, com personagens que, revelando uma existencialidade mato-grossense, estão no ar, soltos e livres, não comprometidos com uma possivelmente falsa matogrossidade, humana e literariamente disponíveis. O narrador de Deus de Caim atinge esse plano porque nele o meio se impõe, a linguagem determina tudo, é no domínio manual da língua que ele faz repousar a força do que tem a dizer. Às vezes segue o sistema de substantivo, ponto; ou substantivo, particípio passado, ponto; ou substantivo, gerúndio, substantivo, ponto. Tudo direto e claro. Claro e forte. Leiam-se as primeiras palavras do romance e lá está: “Na rede Lázaro. Zumbidos. O irmão morto na rede. O mundo rodeando sua roda...”, mas Dicke não se prende a isso, não está interessado em erguer uma nova rotina: vai em frente e alonga suas frases quando acha que esse alongamento será mais significativo do que a anterior curteza. Como seus personagens se misturam sem causar confusão ao escorrer da história, os ângulos da narrativa também mudam sem que o leitor perceba que tudo se transformou. É a primeira pessoa e não é, é terceira e não é, numa boa loucura de narração em que avulta uma completa comunicabilidade. Ricardo Guilherme Dicke se comunica facilmente com o leitor, rompe com tranquilidade as defesas de quem penetra em seu mundo. Dentro em breve, o homem de fora está cercado de outra mundologia, as realidades violentas e subversivas da narração de Dicke o envolvem com toda a rapidez, e, tendo obtido esse efeito com um manuseio de dedos, cria uma visão e consegue um tipo de narração visual de que, no cinema, Luís Buñuel, Fellini e Nélson Pereira dos Santos (pelo menos o Nélson de Fome de Amor) são bons exemplos.
 
Há temas recorrentes em Ricardo Guilherme Dicke: os do sexo e da morte são os mais evidentes. E aí vemos outra vez a dualidade marcusiana, o erotismo servindo de afirmação de vida e de proteção contra a morte. Tanto no estilo puramente vocabular, como no modo de enfileirar acontecimentos e sensações, Dicke me parece às vezes um Céline. Também seu modo de lidar com o tema da morte é celiniano, mas sem que haja uma influência do escritor francês sobre o autor de Deus de Caim. Um romancista norteamericano, Jay Friedman, fala nessa permeabilidade temática e linguística das não-influências que, contudo, estão no ar. Louis-Ferdinand Céline morreu em 1951 e seus dois livros mais importantes – Morte a Prestações e Viagem ao Fundo da Noite – se transformaram em bíblia para muita gente. O tradutor norteamericano de Morte a Prestações afirma, em introdução que escreveu para esse romance: “Para nós, Céline era O Autor que havia escrito O Livro. Não nos sentaríamos à mesa com uma pessoa que não o houvesse lido. Que teríamos para dizer a um bárbaro?”. Conta Friedman que, tendo publicado um romance em 1962, começou a ler opiniões de críticos que diziam coisas assim: “Poderia ele ter escrito um parágrafo se não tivesse havido Céline?” ou “O Sr. Friedman, naturalmente, digeriu muito bem o seu Céline.” Contudo, a verdade era que Friedman não havia lido Céline. Quando o fez, deu razão aos críticos. O estilo e os temas de Céline andavam no ar e outros escritores os pegavam sem precisar de leitura.
 
Em que se parece Dicke, o brasileiro, com Céline, o francês? Em primeiro lugar, o estilo dos dois tem pontos de contato; depois, os temas; e a loucura geral que envolve os assuntos e os personagens dos dois escritores; e o sexo, sexo sujo e sexo limpo, antes de tudo veemente, violento, antimorte, atirando-se contra Tânatos e às vezes, por isso mesmo, chegando muito perto da morte. A antecipação da morte, que constitui uma das bases da literatura celiniana, é também parte integrante do mundo de Dicke. O homem comum costuma chamar de absurdo tudo o que fica perto demais da morte. Há quem deteste entrar em cemitério. Há quem nunca viu uma pessoa morta. O escritor, sal da terra, torna-se o contrário disso, pelo menos quando é um escritor do tipo de Céline, e transforma sua linguagem em experimento da morte, em depuração do sexo. Veja-se que tudo é linguagem. A obra de arte só existe por causa do meio de que se utiliza. De boas intenções andam cheios os paraísos e as obras literárias. O melhor dos temas dará o pior dos romances (assim como o pior dos romances pode dar o melhor dos filmes, quando a linguagem deste, com o mesmo assunto daquele, é mais linguagem do que a que fora usada no livro). Em Dicke, a linguagem não se perde. Ela é o sexo e a morte que o autor deseja mostrar e cujo espírito o leva a escrever. Mas não é o espírito que torna sua obra uma novidade em literatura. É sua linguagem, é a maneira como ele se apossa de um punhado de realidades e constrói um livro. Já se disse que Céline usou uma “linguagem de ódio”. Não poderia, para ele, haver outra linguagem. Até certo ponto, de ódio é também a linguagem de Dicke, contudo de amor também, não o romântico, o de puro sentimento, mas o erótico, o da loucura de Eros que, felizmente, o mais civilizado dos homens e a mais industrial das sociedades ainda são capazes de ter.
 
No final do julgamento do Prêmio Nacional Walmap de 1967, os julgadores – Guimarães Rosa, Jorge Amado e o autor destas linhas – discutimos os dois romances com que Ricardo Guilherme Dicke se apresentara ao concurso: Deus de Caim e Décima Segunda Missa. Ambos muito bons. O primeiro nos pareceu mais bem realizado. Rosa falou de sua força envolvente, de sua impetuosidade vocabular. Jorge Amado realçou sua narrativa, sua coragem de narrar sem recursos falsamente literários. Ficamos, os três, certos de que ali estava um romancista de tipo novo, um homem capaz de abalar a nossa ficção. O prêmio dado pelo Walmap a Deus de Caim, de Ricardo Guilherme Dicke, vinha, assim, sob o signo da novidade. Ao ver agora esse romance posto em livro, ao escrever este prefácio para a Edinova, uma editora que põe a renovação no nome que usa, ao entregar o que escrevi a Hugo de Lyra Novaes, o editor, sinto que a iniciativa dos prêmios Walmap e o entusiasmo de José Luis de Magalhães Lins estão promovendo algumas clareiras na confusão literária do Brasil. Que às vezes revelar um romancista como Dicke é, para um país, mais importante do que decênios de planificação.
 
                                                         Rio de Janeiro, 19 de junho de 1968.
 
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*Antonio Olinto é escritor e crítico, da Academia Brasileira de Letras

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