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O sopro renovador de um romance desconcertante
Página publicada em: 18/02/2010
Ronaldo Cagiano
Texto-apresentação da 3ªedição do romance "Deus de Caim" (LetraSelvagem)
A literatura é revanche de ordem mental
contra o caos do mundo.
Jorge Luís Borges
 
 
Morto há pouco mais de um ano, Ricardo Guilherme Dicke viveu um longo e injusto ostracismo depois que deixou o Rio de Janeiro e voltou para o Mato Grosso. Apesar da distância dos holofotes, deu continuidade à sua produção ficcional com o mesmo compromisso, espírito e responsabilidade estética que caracterizaram sua relação com o mundo da arte. Sem os arruídos da imprensa hegemônica e monopolista dos grandes centros, seguiu publicando por pequenas editoras de seu estado, sem a atenção e repercussão que sua obra deveria merecer. Em Cuiabá, onde permanecia isolado e até desconhecido de grande parte dos leitores de sua terra natal, por força e culpa da criminosa negligência e do imperdoável silêncio do mercado editorial, Dicke deixou várias obras inéditas.
 
Um dos maiores escritores do Brasil, autor de uma obra peculiar, Dicke foi descoberto em 1967, graças ao prestigioso Prêmio Nacional Walmap, concedido a este Deus de Caim, que lhe deu visibilidade nacional e excelente acolhida da crítica. Publicado em 1968, em boa hora a LetraSelvagem o reedita.
 
Essa iniciativa do escritor-editor Nicodemos Sena faz justiça não só a um grande autor, mas a uma narrativa visceral, desconcertante e repleta de recursos estilísticos e dotada de uma linguagem que se distingue da prosa vigente na ficção nacional, pelo seu viés nada ortodoxo, sem concessões a facilidades que preservem a linearidade narrativa, há muito condicionada ao literária e politicamente correto, tão comum em  nosso cânone literário. Depois de Grande Sertão: Veredas, certamente Deus de Caim foi o romance que impactou a crítica, a mídia e os leitores.
 
Ao mergulhar na tradição de um mito bíblico, buscava o autor armas e forças para subverter e desconstruir, por via do absurdo, uma história ancestral de ódio entre os irmãos Abel e Caim, que aqui é transcriada na contenda entre os irmãos gêmeos Jônatas e Lázaro, apaixonados pela jovem Minira. Mais que um embate por um amor impossível, eis aqui o símbolo revelador da disputa de poder. E o romance se desenrola tendo como pano de fundo essa querela, e também na pele e na voz de outros tantos personagens que se entrelaçam e participam da atmosfera dessa trama ambientada numa mítica e imaginária Pasmoso, carregando as tensões e conduzindo aos mesmos dilemas existenciais que permeiam a história do Velho Testamento.
 
A linguagem que em Deus de Caim se sobrepõe de forma magistral, logo se percebe na abertura do livro – “Na rede, Lázaro. (...) O irmão na rede, morto. (...) O mundo rodeando sua roda.” – indicando a importância da carga semântica das palavras e a crueza com que a realidade é (re)tratada, sobrenadando nas correntes emocionais o mundo cruel e despótico de um sertão, mais psicológico que físico, como poderá perceber o leitor em todo o livro.
 
Nas diversas instâncias narrativas de Deus de Caim, primeira e terceira pessoa se alternam, assim como vida e morte se revezam, num espectro candente que coloca em cena o erotismo e as mazelas do sexo, do enfrentamento maniqueísta entre o bem e o mal, o jogo entre o sagrado e o profano, o movimento pendular entre paixão e ódio, e a oposição Eros x Tânatos.
 
A apropriação de realidades tão díspares explicita a contundência dos fatos. Os personagens se interpenetram, numa (in)tensa projeção de seus conflitos, numa superposição caleidoscópica de situações, que nos remetem a um romance mosaico em que da família à política, tudo é matéria e circunstância para uma dissecação magistral da anatomia dos dramas pessoais, em que Dicke projeta uma  rica elaboração estética, lembrando os caminhos percorridos por um Cortázar, um Osman Lins e um Guimarães Rosa, quando se pode referir, sem dúvida, a uma arquitetura formal e numa temática plurissignificativas.
 
Deus de Caim surge num momento delicado da vida brasileira, quando a ruptura do Estado de Direito culminava na supressão de valores tanto éticos quanto estéticos. Paralelamente, o mundo vivia outras subversões, pelo questionamento dos costumes. As barricadas invadiam as ruas de Paris, e Woodstock representava o grito libertário de uma geração saturada dos velhos estereótipos sociais, morais, sexuais e políticos e a exigência de paz e amor contra o sentimento beligerante que, desde a Guerra Fria e com o conflito do Vietnã, dominava a consciência dos estados hegemônicos.
 
Nesse caldo de cultura, a produção literária surge como uma das alternativas em que o artista poderia exercitar outra revolta, a partir de uma rebelião contra os estatutos bem comportados da inteligência, da cultura e da literatura até então predominantes. Assim como o cinema novo, a poesia já havia dado o salto dialético, realizado sua ruptura por meio da reação dos concretistas, ao propor uma estética divergente, que optava pelo visual e/ou pela economia de meios para comunicar plenamente o seu universo.
 
Dicke entendeu, a partir de Deus de Caim, que as estruturas arcaicas do sentimento e da reflexão precisavam ser enfrentadas a partir de um olhar crítico e reflexivo sobre certos tabus, como o sexo, o erotismo, o incesto e o ódio familiar e, assim, enfrentar, inclusive, um momento histórico em que a sociedade experimentava uma nova ordem de pensamento e ação, um divisor de águas na história da própria humanidade.
 
Caudatária dessas transformações, a literatura teria um papel axial, ao ser capaz de abrir um novo flanco, desencadeando – e legitimando – uma outra leitura do mundo e que fosse tão vulcânica, que colocasse em dúvida as fórmulas narrativas domesticadas, harmônicas e homogêneas que vicejavam até ali. E uma obra que fosse um contraponto à técnica que caracterizava grande parcela da ficção brasileira surgiria com seu sopro renovador.
 
Assim, o projeto ficcional abarcado em Deus de Caim redundaria num outro modelo, ou experiência estética, em que forma e conteúdo resultassem numa relação simbiótica. Ou seja: que um seria ressonância do outro, naquilo em que as forças da natureza humana, social e política fossem capazes de influenciar o romance, com presença determinante na ampla temática tratada pelo autor. E nessa obra capital, o histórico e o sociológico não se distanciam, porque reverberam nas ações, nos sentimentos e nas con(tra)dições afetivas e nas re(l)ações dos personagens, com lastro no inconsciente coletivo, pois o autor não deixa de flertar – pois não ignorava – a pungente carga que o momento histórico impunha ao seu processo criativo.
 
Nesse contexto, ao projetar a construção de Deus de Caim, Ricardo Guilherme Dicke vai ao encontro do que afirma Alfredo Bosi, em Literatura e Resistência (Cia. das Letras, SP, 2002): “(...) os escritos de ficção, objeto por excelência de uma história da literatura, são individuações descontínuas do processo cultural. Enquanto individuações podem exprimir tanto reflexos (espelhamentos) como variações, diferenças, distanciamentos, problematizações, rupturas e, no limite, negações das convenções dominantes de seu tempo”.

Na perspectiva dickeana, as realidades e convenções sociais e literárias recebem, então, o choque de uma avidez indisciplinada, em que se evidenciam as tensões e dilemas tanto da arte quanto dos personagens, ao propor uma leitura distinta, e até demolidora, dos seus aspectos conservadores e da relevância de seus papéis numa sociedade dominada pelas elites mais refratárias às inovações, como a interiorana, arcaizada e mítica, simbolizada por Pasmoso que, no mesmo diapasão, nos remete a Macondo de Gabriel García Márquez e à Comala de Juan Rulfo.
Deus de Caim remonta a geografia de um território arruinado por práticas sociais, morais e religiosas tão avassaladoras quanto hipócritas. Nesse ambiente em que morte e vida se rivalizam, seus personagens, como Lázaro e Jônatas, ressurgem, na concepção alegórica de Dicke, como reflexo das forças antagônicas que estão em permanente colisão, porque não conseguem superar os desejos de modernização que as novas demandas impõem e sofrem por uma atávica prisão às premissas autoritários que uma moral religiosa e burguesa conformam no plano pessoal e íntimo.
 
A transposição desse estágio se mostra cada vez mais onerosa para os protagonistas do drama, quando tudo parece desembocar na tragédia, tal a complexidade e o dilaceramento da própria vida, com suas relações pendulares entre céu e inferno, a repressão e desejo.
 
O ser fragmentado pelas suas próprias dúvidas, estiolado pelos seus fracassos afetivos, reduzido a um animal político, fragilizado e subordinado a leis que ele próprio desconhece ou reprime, entre a sombra da moralidade castradora e a avassaladora torrente dos instintos primitivos – essa é a essência dos personagens de Deus de Caim. O autor procura descrever e aprofundar as nuances individuais dos que, mais do que a insularidade num sertão mato-grossense, vivem seus desertos psicológicos. Retirando-lhes as máscaras, desvelando seus sofrimentos, frustrações e perdas, tirando das sombras os seus demônios e fantasmas, segue na tentativa de compreender, por meio dos acontecimentos, sejam eles líricos, épicos ou dramáticos, o sentido ou a razão de ser de cada um, e da própria vida.
 
Deus de Caim se converte numa escritura das paixões e desatinos humanos; é também fruto de uma catarse do autor e de seus personagens, tal o fluxo desordenado, eruptivo e fulminante com que sua narrativa, tecnicamente apurada, vai se processando. Há uma entrega do autor, de tal maneira explosiva e delirante, que tudo nos leva a pensar que Dicke parece ter escrito esse romance impulsionado por forças extraordinárias, num profundo transe estético, no qual a própria experiência intelectual e criativa do Dicke escritor, filósofo e pintor se conjugam e se interpenetram com a uterina emoção dos envolvidos, que só poderia desembocar numa linguagem sofisticada.
 
Nesse romance, percebem-se as características do realismo mágico ou fantástico (ou realismo maravilhoso, como conhecido no resto da América Latina). Pela via do fantástico, Deus de Caim se vale dos arquétipos do fantástico, do mítico, do sobrenatural e do supra-real que compõem a vida dos personagens, tomando-lhe o inverossímil como denúncia do absurdo da própria realidade.
 
Ao esfaquear seu irmão Lázaro, Jônatas repete o ódio de Caim e engendra toda a ação do romance.  Nos vinte e um capítulos da obra, a história da família Amarante vai se desdobrando numa colcha de retalhos de situações conflituosas, que metaforizam a própria história do Brasil.
Nos diversos cenários e planos temporais e geográficos em que as ações ocorrem, oscilando entre Pasmoso e Cuiabá (onde Lázaro vai se abrigar na casa do tio Afonso, para se tratar, após ser atingido pelo irmão), a narrativa se desencadeia para reafirmar o desmoronamento desses mundos, a desagregação da moral, da religião e da política,  penetrando fundo os temas universais.
 
Ao traçar um painel da vida rural e urbana do Mato Grosso, Deus de Caim desvela também as tensões sociais da época, o garroteamento da liberdade, a relação entre a civilização e a barbárie, entre o campo e a cidade, entre a descrença e a utopia, entre o imperativo da modernidade e os grilhões do atraso. É um percurso sofrido, uterino e sombrio, no qual também se constrói uma densa reflexão sobre a natureza e as ações humanas, em que estão presentes os conceitos filosóficos do autor. Aqui, Dicke dialoga com Sartre e o existencialismo, aproveitando para discutir questões fundamentais como a finitude e a morte, a expropriação do mundo pelo capital e pelo lucro (que tanto alienam os indivíduos) e a responsabilidade do ser pelo seu próprio destino e o da humanidade, que, afinal, diz respeito à própria tragédia do existir e à crise enfrentada pela sociedade, diante da fadiga das estruturas convencionais de moral e poder.
 
Com essa reedição, ressurge um autor demiúrgico e primordial em nossa bibliografia, cujos livros nos ajudam a refletir sobre os tormentos vividos pela civilização contemporânea, que experimenta um mal-estar pós-moderno.
 
São Paulo, 10 de janeiro de 2010.
 
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*Ronaldo Cagiano é escritor e crítico, autor, entre outros, de "Domingo Indigesto"

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Autor

» Rogerio Guarapiran

Rogerio Guarapiran nasceu em Taubaté-SP (13 de março de 1983). É dramaturgo, músico e produtor cultural. Estudou Letras na Universidade de Taubaté (UNITAU) e Linguística na Universidade de Campinas (UNICAMP). Graduando em Ciências Sociais na Universidade de São Paulo (USP). Iniciou no teatro amador em 1998 e fundou, junto com Renan Rovida, o grupo de teatro Pé-de-Couve e a banda Mantra, espaços onde começou a desenvolver sua autoria em teatro e música. Trabalhou como técnico em eletrônica em fábricas e empresas e como educador na rede municipal de Taubaté. (Saiba mais)

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