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Críticas

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Fantasmagorias em scherzi-rajadas líricas: a outra metáfora
Página publicada em: 03/11/2008
Beatriz Bajo*
Neste ensaio, temas como a morte, a poesia como "devaneio da ultravida", arte e representação da realidade, finitude, erotismo e estratégias de sedução, entre outros, são abordados a partir do livro "Me enterrem coma minha AR15", de Marcelo Ariel
 
 
A morte foi tema de estudo e de investigação ao longo desses últimos meses e este artigo recorta ao mesmo tempo em que resgata algumas concepções acerca da finitude que podem ser contempladas na arte, neste caso, verificadas na poesia.
 
De acordo com pressupostos filosóficos obtidos no livro A morte – ensaio sobre finitude, de Françoise Dastur, afirma-se que a humanidade alcança a consciência de si mesma somente quando enfrenta a morte. Segundo a autora, há dois tipos de conduta de luto: a externa (social, que constrói a memória coletiva) é fundamentada em ritos funerários, que se originam pela revolta, pela não-submissão passiva frente à natureza das coisas; e a interna, o fato de se-saber mortal, por meio de uma relação “espiritualizada” do morto com seus próximos, “em um processo de interiorização do defunto do qual o próprio ritual funerário não é senão uma mediação visível”.
 
Assim sendo, em alusão à definição artistotélica de que o homem é um animal político, Dastur diz que ele possui uma relação muito mais profunda com seus predecessores. Logo, acresce-se a todo ato político, um peso histórico que ultrapassa o indivíduo que o promove. A vida humana seria, então, segundo Heráclito, uma vida “com” os mortos. A crença grega em um daimon pessoal que acompanha a vida de cada homem, anunciando essa comunidade por meio do espírito dos ancestrais é o alicerce de toda cultura. E toda cultura é cultura da morte revelada por ritos funerários, pela “conservação das palavras vivas na escrita, culto dos ancestrais, relatos mitológicos e a literatura em geral”.
 
Partindo do pressuposto de que todo registro é um ritual funerário, já que se pretende a conservação e, com isso, a sobreposição da vida humana sobre a morte. Além disso, considerando que a morte só existe para quem pensa sobre ela, haja vista que se o ser humano não pensasse, não levaria em conta sua finitude, a literatura é a reafirmação da mortalidade do homem.
 
Para este artigo, interessa a obra poética de Marcelo Ariel, poeta que compartilhou seu lirismo pela primeira vez em Me enterrem com a minha AR15 (Scherzo-Rajada), publicado em 2007. Assim mesmo como uma rajada de versos, Ariel inverte as perspectivas entre vida e morte já que seu lirismo concentra-se na morte dentro da vida ou da vida dentro da morte, como se os homens fossem todos fantasmas encenando um espetáculo. Não há mais o medo do enfrentamento já que todos estão mortos em um mundo autenticado como vazio.
 
Finitude e imortalidade
 
O conceito de morte vem sendo transformado ao longo do tempo. O historiador francês Philippe Ariès (1914-1984) escreveu a História da morte no Ocidente, através da qual as concepções humanas a respeito da morte vão sendo modificadas, sob aspectos histórico-sociológicos. Segundo o autor, a morte já foi um acontecimento público. O enterro na Idade Média acontecia em redor de igrejas e mortos e vivos coabitavam os mesmos lugares em que ocorriam também festividades. No século XII as sepulturas começaram a ser identificadas. Somente após o século XVIII é que a emoção se exacerba e ganha tom dramático. No século seguinte, a morte se transforma em tabu e deixa de ser um acontecimento social no século XX, quando o enfermo troca a casa para morrer no hospital.
 
Passeando por conceitos filosóficos, a professora Françoise Dastur aponta que as características essenciais da humanidade são a consciência da morte, a linguagem, o pensamento e o riso. Há uma ligação entre todas as experiências vivenciadas durante uma existência e a morte apresenta-se desde que haja pensamento (representação).
 
Nesse sentido, tem-se o livro Me enterrem com a minha AR15 (Scherzo-Rajada), lançado pela editora Dulcinéia Catadora. Uma leitura de arrebatamento frente às cidades litorâneas de São Paulo, com destaque a Cubatão – configuradas dentro do capital industrial, que revela as implicações desse cenário na sociedade contemporânea. O poeta provoca maior combustão do que o carvão que molesta a vida já morta dos vitimados à poluição e à miséria.
 
21.
ELA
 
Por dentro ela é o suicídio dos fantasmas e depois apenas um micro-
assassinato hiperlento patrocinado pelo oxigênio, a luz etc... E
depois disso a inexorável burocracia quântica e depois dela o triunfo
da nadificação e depois a vitória da impossibilidade ou do “bandido em
estado puro” como disse Cioran... O bandido em estado puro fecun-
dando o óvulo ou para ser mais preciso mais de duzentos milhões de
cadáveres-à-vista trocados por um único a prazo...
 
A poesia como devaneio da ultravida é porta-voz da morte e Marcelo Ariel (1968 – Santos-SP) é renascido do ósculo azulado do litoral paulista que sobreviveu em meio aos “lixões” industriais do município de Cubatão. Esses depósitos, em que se encontravam restos de animais em decomposição (também recebem o nome de Sambaqui – “tamba-a-aqui”, um termo hindu), passaram a receber cadáveres humanos, ou seja, serviu como espaço para enterramentos. Com a passagem de tempo, os esqueletos, em seu núcleo, sofreram calcificação. Assim, deu-se a morte cristalizada no tempo da finitude.
 
23.
ENDEREÇO
 
os cemitérios são sóis apagados através de um terreno
baldio no hipocampo
com as outras sementes do supersono no centro
do--------------------------- :
Por isso convidamos todos para o final onde a parte
branca do olho vê Deus
Nonada (o nosso nome foi o roubo das
transfigurações)
 
Ariel entretece poemas no tempo da morte, em que não há marcação espaço-temporal, o eu-lírico carrega seus perecimentos dentro do esvaziamento do EU destroçado pelo infortúnio e adulterado pela putrefação do sistema sócio-político e pela humanidade corruptível. A arte, então, manifesta-se como um processo de destruição de egos e sujeições. Inversamente, o que provoca é um encontro consigo próprio e com o outro.
 
10.
CRÔNICA
 
, exatamente isso...algo que uma convenção milenar de vermes, insetos e outros embaixadores da Dona Morte tenta, com sucesso, reduzir a uma espécie de esquecimento geral feito de pó ossos e terra... Alguém já pensou com ternura no próprio esqueleto amontoado em uma ossada?
 
Retomando a concepção da manifestação artística como ritual funerário, portanto um processo identitário de resgate social e de manutenção da espécie humana, pesquisa-se a condição humana desse momento histórico expressa artisticamente pela poesia de Marcelo Ariel em Me enterrem com a minha AR15 (Scherzo-Rajada).
 
11.
Hoje
 
Na incompleta manhã
“abrimos os olhos” e é
como se o mundo fosse um
fantasma sólido que
“por fora” e num instante
imitasse o sino imóvel
do sonho,

imóvel apenas quando acordamos
para a fúria solar
que é
a gênese incompleta
da inquietude de olhar...

Desde a Poética de Aristóteles, são feitos inúmeros estudos sobre literatura. O que se pode dizer de um dos primeiros exames sobre a produção poética é que a poesia não é a representação da realidade, e sim uma re-criação da mesma. Partindo desse mesmo pressuposto, o professor, crítico e ensaísta Afrânio Coutinho reatualiza esse conceito de nova realidade, reforçando que “Através das obras literárias, tomamos contato com a vida, nas suas verdades eternas, comuns a todos os homens e lugares, porque são as verdades da mesma condição humana”. A poesia é um recurso de subjugação da morte, porque ao mesmo tempo em que declara a finitude humana, potencializa-a, no sentido de resgatar o inacessível. O poema é uma ressurreição, composição que extrai o “existir” do esquecimento e da obscuridade:

Quando ele(eu?) estiver morto minha mente estará onde
estou agora (Ela) microenigma de milhões de nós de fumaça...
Quando ela finalmente estiver onde estou (eu) não estarei mais
aqui... Meus braços serão livres como asas dentro do raio de
uma bomba que inclui em seu círculo todos os universos que
fui... Mas é sempre bom lembrar que as asas prendem o pás-
saro ao vôo... do tempo...
 
Recursos estilísticos

Todo artista é alguém íntimo da solidão, essencial para um trabalho que requer reflexão. Blanchot disserta em O espaço literário sobre o êxtase do oferecimento à ausência de tempo no momento da escrita. Não é apenas um escrever, mas um ouvir, um ouvir-se no atemporal que sempre é: “espaço violentamente desvendado pela contestação mútua do poder de dizer e do poder de ouvir”.
 
Nesse sentido é que o que se narra assevera-se na permanência do registro, por meio do qual o outro do “eu” sobrepõe-se, largando a pessoa primeira desamparada: “o autor não caminha para um mundo mais seguro: o “Ele” toma o lugar do “Eu”, eis a solidão que sobrevém ao escritor pela obra”.

Esse outro que desestabiliza a pretensa completude, como um latejar sem fim na submersão do ser: “quem sonda o verso morre, reencontra a sua morte como abismo” , seria a busca da linguagem na brancura do silêncio. Como numa foto que parte do negativo, assim é a literatura.
 
3.
QUEIMAR A NUVEM:
 
Cara Ana C.
Inútil o tempo gasto em reduzir o vivido (O essencial dele, inclu-
sive) a uma ética para fantasmas que se renovam através da
estratificação de falsos êxtases projetados no fracasso de um
pacto com a palavra que de modo algum excluía o nada da
lucidez e que a qualquer instante se revelava uma gestão oníri-
ca de tensões e silêncios insuportáveis e sem nenhuma isenção,
que se materializavam sempre como afastamento, opacidade,
suspensão ou adiamento do que poderia SIM ter sido a raiz
quadrada do maravilhoso apesar do EU que esteve sempre num
mundo-fantasma (VER o triunfo de Celan, Eliot Smith etc...)...
Que foi apenas um mínimo modo de sair de si através do
pesadelo da cobra mordendo o próprio rabo para tornar igual o
dentro e o fora e fazer do invisível mais do que sua outra parte:
o vôo-futuro-fogo para a nuvem de auto-enganos de quem fica...
Me diga uma coisa, isso ao menos te deu a volúpia antecipada
do torpor da invisibilidade e do inexistido?

No tempo há o perecimento e a perenidade. Assim nasce a escrita como representação, uma nova presença, portanto, uma substituição imortal de congelamento do tempo: “É pela palavra que somos capazes de nos situar no tempo, lembrando o que ocorreu no passado e antecipando o futuro pelo pensamento.”  

Nomear é descobrir, é conhecer, assim que a percepção do mundo fez-se mediada pela palavra. E a literatura é a reinvenção encantatória dos sentidos que sublima a falta, nomeia o inominável, explica o intraduzível: “Presença (Anwesen), (Sein) pertence à clareira do autro-ocultar-se (tempo), e a clareira do auto-ocultar-se traz Presença (Ser).”  E o existir é uma maneira de estar fora, como que um esvaziamento de si. Daí o processo anterior ser o inverso, o retorno: “É no pensar do Ser que a liberação do homem para a ex-sistência, liberação que fundamenta a história, chega à palavra, (...) considerada esta como uma articulação protetora da verdade do ente em totalidade.”
 
O estratagema da ordenação do pensamento acontece no impulso de expulsar-se, e a esse impulso preexiste a noção do outro, conseqüentemente, dá-se a noção do ego: “É na linguagem e pela linguagem que o homem se constitui como sujeito; porque só a linguagem fundamenta na realidade, na sua realidade que é a do ser, o conceito de ego.”
 
Esse eterno silêncio humano faz do discurso um disfarce: “A imagem, fantasma, ora dói, ora consola, persegue sempre, não se dá jamais de todo. A aparência, desde que vira semelhança, sela a morte da unidade.”  Nesse sentido, conforma-se a concepção de Lacan sobre a estrutura inconsciente que é “como uma linguagem, como uma cadeia de significantes latentes que se repetem e interferem no discurso efetivo, (...), como se o discurso fosse sempre atravessado pelo discurso do Outro, do inconsciente”
 
A oralidade marca o início da poesia que passou a ser registrada posteriormente, as duas tradições vêm sendo confluentes da expressão poética que funde: “Visão e audição, a imagem e a palavra. (...) A primeira é uma arte de participação e de comunhão; a segunda é um diálogo silencioso com o universo e conosco mesmos.”
 
Seguindo esse propósito, Paz ressalta que a poesia encontra-se entre a revolução e a religião, como a outra voz:
 
Sua voz é outra porque é a voz das paixões e das visões; é de outro mundo e é deste mundo, é antiga e é de hoje mesmo, antiguidade sem datas. Poesia herética e cismática, poesia inocente e perversa, límpida e viscosa, aérea e subterrânea, poesia da capela e do bar da esquina, poesia ao alcance da mão e sempre de uma mais além que está aqui mesmo. (...) Plenitude e vacuidade, vôo e queda, entusiasmo e melancolia: poesia.
 
A linguagem possui figuras que unem o invisível ao visível, a idéia ao objeto. Essa personificação chama-se alegoria, que aproxima o ser de um sentido. A poesia, a literatura de uma maneira geral, possui o papel de simbolizar a vida, assim sendo, à poesia cabe a unificação que mantém a sobrevivência humana e seu renascimento.
 
Onde a possibilidade de ser
fora de todas a palavras
nos tornará imunes à aniquilação da Alma?
 
Desse instante aberto para fora da nossa presença
Disto que chamávamos de vento, amor, silêncio...
Que será apenas um silencioso esqueleto
com a marca do nosso esquecido olhar.
 
A história das mentalidades começa a ser estudada no século XX sob aspectos arrolados ao universo mental e às maneiras de sentir do homem que representam a coletividade. Essa investigação do imaginário coletivo abarca especulações simbólicas e imagéticas que traduzam a percepção social. Partindo desse pressuposto que Michel Picard, autor de La littérature et la mort , preconiza sobre as simulações coletivas da morte que refletem uma época, um acontecimento ou o caráter cultural de uma sociedade e a ilusão referencial em relação à finitude.
 
Segundo o autor, não há uma relação imediata com a morte haja vista que esta só aparece por conta da consciência e da linguagem. Assim sendo, a morte é uma metáfora, um jogo lingüístico, uma “transversalidade intersubjetiva” em que há diversos significados e não um objeto de estudo. A morte deve ser analisada como um artifício estético na medida em que suas exigências independem da realidade alheia à ficção.
 
A finitude, que é a realizadora do fantástico, concebe a liberdade fantasmática ativando os mecanismos ou estados pulsionais, abordados por Freud: prazer e morte, “pulsões de vida” e “pulsões de morte”. O pai da psicanálise em muitos casos, relaciona mitologia à literatura para cobrir as fendas deixadas pela ciência, acreditando que tanto o psiquismo humano quanto a ciência possuem inconsciente que se torna mito em cada discurso. Para tanto, faz-se uma analogia entre a criação mitológica e a psíquica tendo em vista a teoria pulsional.
 
A pulsão pode ser considerada mitologicamente como portadora do Khaos originário, ou seja, nela estão contidos todos os desvios. O Khaos representa o entreabrir-se, o nada que seria o abismo em que tudo se dissipará no fim dos tempos. Essa força que governa a apartação, o procriar por esquizogênese origina Terra, Tártaro e Eros. Quaisquer coisas advindas do Khaos são concernentes do não-ser porque descendem de energias que negam a vida e a ordem. Quem rege a união amorosa é Eros, a ânsia de copular inerente aos seres. Assim sendo, há um estreito, intenso e permanente vínculo entre o ser e o não-ser que incita o mistério original.
 
9.
Atravessa o que dorme
dentro da cor...

Flor...

Se abrindo para sempre
como a verdade de uma pedra
que a luz desenha entoando apenas
uma pequena parte do Salmo do visível,
para que outros olhos possam
sentir no mundo,
a beleza das metades
invisíveis
que se unem
na brandura do silêncio.

Abeirando-se da psicanálise, o Caos seria o reservatório energético que admite tanto a semente do semente do ser (Eros) quanto a do não-ser (Caos), tal qual o reservatório Pulsional. Assim como Khaos e Eros disseminam separação por um lado e união erótica por outro, também as pulsões de morte (Caos) e de vida (Eros) estão conformadas no aparelho psíquico. Nos pressupostos freudianos está a pulsão como alguma coisa que se origina do corpo. No entanto, há diferenças entre as pulsões, por exemplo, a destrutiva (pulsão de morte) seria uma "disposição pulsional autônoma, originária do ser humano" que, segundo Freud (1930) , age de forma independe tanto quanto a pulsão sexual. Aquela é silenciosa e sobrepõe-se sobre as representações de objetos e palavras, atuando como a eminência da pulsão; enquanto que a pulsão sexual encontra-se amparada pelo princípio do prazer, situando-se representativamente ao psiquismo.

Ficamos os dois ali, paralisados pela beleza do nosso pseudo-suicí-
dio... nus e abraçados... Nisso ela acorda se vira para mim rindo...
ainda possuída por um abismo e diz:
“Eu tenho uma orquídea no meu útero” e eu respondo:
“Nossa... Já tinha me esquecido do corpo”
Depois nos levantamos para tomar banho.. (Mamíferos..disse o fantas-
ma do Cioran...). Não mais unidos pelo limbo do abraço-sono... Não
mais como dois amantes afogados no torpor... no torpor..no torpor...
Tomamos café com conhaque... O Sol nasce... Coloco um cd do
Portishead... Ela acende outro Gudan... “Adoro o cheiro dessa fumaça
dentro da minha boca”, digo isso antes de sumir para sempre...
 
Há apenas uma organização pulsional, a que procede de significantes que provocam necessidades aos seres; nesse sentido, reivindicam satisfação que se faz necessária por meio do objeto. Portanto, a natureza pulsional é a mesma, mas a apresentação ao aparelho psíquico é que provoca o aspecto dual desse mecanismo: conjuntivo e disjuntivo. Se aparece cindindo é a pulsão de morte (Caos), se, atrelando é a de vida (Eros). No entanto, Freud ressalta o aspecto conservador da pulsão de vida e o inovador da pulsão de morte, concebendo-a como potência criadora. Portanto, Eros é tão destruidor como representativo do ser e da mesma maneira, Khaos origina a apartação, mas também a igualdade. Assim sendo, o próprio instinto sexual abarca a morte, um elemento destruidor que se faz imperioso ao processo do devir. Além disso, conforme José Gutiérrez-Terrazas , Freud concebe a pulsão de morte como um mecanismo que esgarça a individualidade, ocasionando o aniquilamento do “eu”.
 
A poética de Marcelo Ariel trabalha desmantelando mundos, adentrando pelas antinomias sociais, entrecortando os instantes e os seres que se encontram na imaturidade da finitude, no papel que vela o lirismo e amaldiçoa ao mesmo tempo em que santifica os versos despedaçados do sem-tempo:
 
7.
O tempo é o poema que embala os mortos?
O espaço é o tempo que sonha com os vivos?
O que é o Sagrado?
 
Um ponto de ônibus, uma folha seca, um copo d’água no
fundo do oceano?
Um pedaço da minha unha cortada já é uma antecipação do
meu cadáver fragmentado?
 
Picard busca a investigação da perversão textual que sustenta os estreitos vínculos entre arte e morte. Em O prazer do texto , Roland Barthes pergunta se “o lugar mais erótico de um corpo não é lá onde o vestuário se entreabre”, enaltecendo o caráter obnubilador da literatura e concorda com a psicanálise quando afirma que a intermitência é erótica: a encenação de um aparecimento-desaparecimento, tal qual o processo heideggeriano: “Este aparecer, este re-velar do Ser introduz a consideração do ocultamento: o que se re-vela supõe antes um estar oculto, e ao revelar-se fica sempre ainda oculto.”
 
Num texto de fruição, segundo Barthes, nunca se dá um diálogo, “ele institui no seio da relação humana – corrente – uma espécie de ilhota, manifesta a natureza associal do prazer (só o lazer é social), deixa entrever a verdade escandalosa da fruição” .
 
Assim acontece a solidão essencial que está arraigada na arte e no sujeito, submetido pelo discurso, adjetivo de humano e dependente do outro. Ao encontrar-se com o pensamento (objeto), alcança o espírito conhecedor de sujeito, intérprete de si.
 
A literatura é permeada de erotismo e estratégias de sedução, para que o leitor possa torna-se íntimo do que lê. E a morte, então, na literatura é personificada em diversas figuram sedutoras e pavorosas, concomitantemente. Assim, Marcelo Ariel constrói uma imagem sombria da morte que peregrina sorrateira e disfarça-se sob capas.
 
CARTA PARA A MORTE
 
Imagino Camões, a vala onde morto estava;
O quarto onde encontraram o cadáver de João Antônio;
O sapato que Antonin Artaud segurava;
No paletó de Garcia Lorca a flor intacta;
A cama molhada de suor do último sono de Caio F.;
O prato vazio que caiu das mãos de Óssip Mandelstam;
Os círculos na água provocados pelo corpo de Paul
Celan...

Devo parabenizá-la por estes momentos de uma estilística
sempre surpreendente,
somente às vezes ofuscada pelos lampejos precários desta
luz fraca que caminha nas capas...

O poeta em Me Enterrem com a minha AR15 personifica a morte, alegoriza-a apresentando, sobretudo, a imagem do nada, dos espelhos, do deserto, da nuvem, do labirinto ou de um palco, já que seus versos interpretam a vida como um teatrofantasma:

 
15.
 
A vida pode
ser vivida como um teatro
dentro do labirinto onde a energia
difícil e difusa do que somos apenas através
do outro e para o outro... essa energia perdida do si
mesmo é a única coisa capaz de construir pontes
sobre o abismo dos gestos e das palavras
e iluminar um pouco o percurso
dentro desse labirinto
no escuro.
 
Nesse cenário sempre em penumbra, há uma encenação em que os atores são todos espectros do ser que é corroído entre a vida que não se suporta sobre as vidas aniquiladas pelos silêncios lentos. Os poetas estão enterrados, inclusive o eu-lírico:
 
Aí dentro é o mitológico em estado bruto... lutando con-
tra o abstrato e procurando driblar o sono... principal-
mente aquele dos caprichos de Goya... que corteja o
poço sem fundo do transfigurado no e etc... para ser
um minotauro de si mesmo no ventre da balela do
real... ops... era para ter escrito baleia... mas o erro
como sempre melhora o meio e a mensagem... melhora
as lápides... a minha se chama Marcelo Ariel...
 
O que é segredado ou misterioso é matizado pelo tom mortal, no entanto, assim como não há luz sem sombra, não há como falar de vida sem anunciar a morte. E Michel Picard  salienta a relação erótica do homem com a mãe instituída desde a infância com a finitude. Essa apartação advinda do cordão umbilical, segundo o autor, causa a mesma sensação angustiante da morte como o padecimento do abandono. A angústia irmana-se a morte já que reforça todos os processos de perda.
 
A retaliação do desamparo é comparada com a escrita, servindo de uma das determinantes da arte, haja vista que a ex-pressão configurar-se-ia como um caminho à tentativa de salvação. A escrita seria então uma forma de compensar as faltas maternas imaginárias, irrompendo entre os interlocutores sobressaltos afetivos intensos.
 
12.
Há um rosto de sal
E um girassol
No fundo do oceano;
O deus é um recém-nascido
Com duas facas no lugar dos braços
E uma moréia cega dentro do sol...
Os olhos virados para dentro são a chave
Do teu sonho vermelho...

Conforme Picard pronuncia sobre as concepções bartheanas, a recognição do pathos é comprometida pela manifestação da morte como enredo. Nesse sentido, a morte é um significado sem referente que mascara a perda e o abandono.  Nesse sentido, a investigação dos aspectos e feições da morte na poética de Ariel, a partir de sua posição de excluído nessa nação periférica liderada por um sistema sócio-econômico opressor, dá-se através da reflexão sobre a expressão e transfiguração de um povo que se quer representado e lido, até os recursos estilísticos utilizados em sua poesia de resistência.

Processo lírico de resistência
 
A poesia comprimiu-se desde o final do século XIX, pelejando nos escombros que advinham das concepções darwinistas de “luta pela sobrevivência” e “seleção natural” do positivismo de Comte e das previsões de Marx. De acordo com Octavio Paz, a poesia foi uma “conspiração nas catacumbas”:
 
Retirado en la paz de estos desiertos,
con poços pero doctos libros juntos,
vivo en conversación con los difuntos
y escucho con mis ojos a los muertos.

A arte debruça-se sobre a vida e a literatura, fabrica existências através de símbolos. Assim, a palavra permanece e o livro é espaço possível de novos mundos. Dentro da vida mortal participam os herdeiros do “pecado original” e, conseqüentemente, da história da humanidade. Herdeiros do impasse mercadológico em que se depara com o consumo e com a proeminência da imagem sobre os demais processos de apreensão sensorial.

Octavio Paz, diante dessa realidade preconiza que “Se nosso pecado se chama dissipação, nosso castigo se chama esquecimento.” , na atualidade em que se dispõe do capitalismo que propaga a desmemoria, há a perda da narratividade.
 
No embate para sua preservação, a literatura é objeto constituinte de cultura, imbuída dos significados dolorosos, solitários e violentos das vidas humanas refletidas pela palavra e “A poesia tem sido rebelião solitária, subversão no subsolo da linguagem ou da história.”
 
Se a febre retornar
poderei ver a manhã
dos Santos
caminhando dentro da fome?
Ser o ar na voracidade das últimas florestas?
Sorver o vinho do silêncio e seus meses e anos dentro do vento?
E na febre sentir a lenta explosão
do corpo
no deserto de dentro...
 
Nesse sentido, os tradicionalismos e moralizações são satirizados pela poesia e o leitor precisa se cultivar, já que tempo e cultura se fundem. Assim sendo, a estratégia seria a desautomatização, ou seja, uma “desaprendizagem do conhecido”  para que seja feita uma renovação interior.
 
Juan: Merda... A palavra é essa... Acabo de quebrar um
espelho com um soco...

te enviarei o restante pelo correio... apenas você Lívia...
saberá como isto acaba...


 (Tive essa absurda idéia... tão absurda quanto a de viver e
depois escrever e não simplesmente viver... quando encontrei
seu nome dentro de uma palavra no início do conto citado...)

 
Sob a ótica de um poeta marginal frente aos valores de produções vinculadas ao Poder que despreza uma população contingente e continua a reproduzir fatores sociais e intelectuais discriminatórios, resgate-se a lírica da resistência que dialoga com a realidade por outro viés de transfiguração da realidade:
 
É óbvio que preferimos os projéteis de Baudelaire
a ver nos túmulos esse uroboro invertido
o dragão de setecentas asas e três cabeças
movendo sua cauda nos presídios...
nas paredes reina no fantasma de Hamurabi..
as unidades prisionais são um átomo do hades...
ali os netos dos sobreviventes de canudos tomam
duas goras de sol cada e transformam a lágrima
em faca....
um leu a arte da guerra
um Maquiavel por dentro?
Outro nunca leu nada só ‘amor-de-mãe’ na pele
lápide...
lá fora o insolúvel respira...
a sociedade contra o social é a U.T.I da alma...
uma reação ao insolúvel: os comandos
são o seu duplo incômodo
(o medo empresarial montado na besta do estado
Janta sossegado...)
num canto do campo de concentração o poeta
enterrado pensa no escuro...
da cauda do dragão sai um anjo de trezentas
cabeças e oferece um cigarro outro lado do
styx... começa o iso 9000 do arrastão...
escrito nas nuvens... a cauda do dragão reescreve a
cartilha do I.R.A;
na cela com os fantasmas de canudos...
aqui fora um presídio simbólico ofuscado pela
moral do espetáculo?
agora a seleção dubla o hino num filme estático
o poeta enterrado canta junto...cantam as AR
15... as bombas caseiras... os ônibus incendiados...
o canto ecoando num terreno baldio
e lá no alto outros anjos cantam o huno do fogo e o
huno da terra enquanto penso na quietude voraz
dos cemitérios onde reina a paz dos ossos...ali o
comando dos comandos acaba com o jogo que se-
parava um presidiário e um policial de um poeta...
 
O poeta é conterrâneo de crianças que nasceram sem cérebro, onde escola já fora necrotério e uma alma que trafica versos, barganhando apelos contra a violência. Assim, no poema “Sonho que sou João Antônio sonhando que sou Fernando Pessoa”:
 
Sabendo da existência de uma igreja ali defronte, pergunto ao anjo: E aí, meu irmão, veio pra missa? O anjo diz: Não, eu vim pelas formigas... E Deus?, volto a perguntar... Está lá ouvindo Bach. Vou até a igreja, empurro a porta e entro num terreno baldio onde os anjos sem asa jogam bola com moleques sem camisa todos muito felizes como se realmente existissem.
 
Com um lirismo sem medidas, a obra de Marcelo Ariel assombra os descaminhos e aniquila as inteirezas em fragmentos que alcançam a esfera do estupendo embate entre vida e morte. Sua poética “desespera” a impossibilidade de viver sem degustar o sabor amargo da morte que escorre por entre versos que se imortalizam. Essa é a única maneira de ser absolvido pelo tempo:
 
24.
DO SER
 
Na suspensão das expec-
tativas se estabelecerá
uma corrosão de todas
as objetividades em
nome desse reinado
obscuro dos POEMAS
que caem estagnados,
mas a graça não será
atingida por nossos
estilhaços. 
 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
 
ARIEL, Marcelo. Me Enterrem com a MinhA AR15 (Scherzo-Rajada). São Paulo: Editora Dulcinéia, 2007.
ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. Filosofando: introdução à filosofia. São Paulo: Moderna, 1986.
ARIÈS, Philippe. A História da Morte no Ocidente. Rio de Janeiro, Ediouro, 2003.
ARISTÓTELES. Arte retórica e arte poética. Tradução de Antônio Pinto de Carvalho. 16ªed. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d.
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* Texto apresentado por Betariz Bajo como trabalho final da disciplina “A morte na literatura e nas artes”, oferecida pelo Prof. Dr. Alamir Aquino Correa ao Mestrado em Letras da Universidade Estadual de Londrina(UEL), Estado do Paraná, Brasil - junho de 2008

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