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A importância de não se chamar Ernesto num romance de Adelto Gonçalves
Página publicada em: 24/01/2017
Maria Luísa Malato
Ao atentar para a etimologia de palavras e nomes empregados pelo autor, a professora portuguesa reafirma que "Os Vira-Latas da Madrugada" é um "romance de sons delicados". (Resenha publicada originalmente no quinzenário "As Artes Entre as Letras", cidade do Porto, Portugal, 11/01/2017). Leia a seguir.
No romance, tem muita importância o nome próprio. Ele distingue a personagem do figurante, confere densidade psicológica ao retrato e “efeito de real” à ação. Até para o art.º 3 da Declaração Universal dos Direitos da Criança, ter/não ter nome é acentuar/anular conteúdos de ordem psicológica, ou ideológica, delimitando no “leitor” (o Outro) múltiplos horizontes de expectativa. Não dar nome é, retoricamente, reduzir o singular ao coletivo, negar estatuto reivindicativo ao “indivíduo”. Por isso o nome civil, ao contrário da marca, é um valor jurídico que se diz inalienável e inestimável, isto é, coloca o indivíduo acima de qualquer avaliação do que nele os outros podem trocar, vender ou comprar.
 
Estes vários aspetos são evidenciados pelo uso do nome próprio, num romance de Adelto Gonçalves: Os Vira-Latas da Madrugada. Escrito desde o final dos anos 60, e publicado em 1981, recebeu a menção honrosa do Prémio José Lins do Rego. Em 2015, foi finalmente reeditado com o prefácio original, de Marcos Faerman, arrancado à última hora da edição de 1981, não fosse o regime político reparar demasiado naquelas histórias tristes “como tristes são os tempos que as tornaram reais”. Se, no contexto repressivo dos anos 60-80, a questão ideológica se sobrepunha à questão estética, o distanciamento da reedição permite hoje valorizar estratégias como o uso irónico do nome próprio, assinalado amiúde pelo itálico.
 
Os nomes próprios revelam aqui uma amálgama de estilos. Não estamos perante um romance de espaço canónico, ainda que se passe em Paquetá, bairro portuário de Santos, no Brasil: a representação de um ponto de encontro incaracterístico de movimentos provisórios é aqui um exercício iniciático, de educação visual. Também não é um romance histórico ortodoxo, ainda que a memória seja a de um contemporâneo da Coluna Prestes, de Vargas e do golpe militar de 1964: “Neste livro, o tempo não existe, os acontecimentos se confundem, as datas são esquecidas”.
 
Num espaço concentracionário, os nomes próprios evidenciam um tempo não-cronológico: a coexistência da Antiguidade greco-latina (os vagabundos podem chamar-se Plínio, Juvenal, Eronildes, Themis), com a Cristandade (Gabriel, Belchior, Rosário, Epifânio); do tempo pré-colonial (Cariri, Tibiriçá), com um tempo colonial (Negrinho Louva-Deus, Nego Oswaldo) ou pós-colonial, de migrações (Arouca, Valongo). O nome próprio aparece associado à nacionalidade ou à raça, como se Paquetá fosse o mundo inteiro: lá moram a turca Isabel, João de Angola, o garção português, o Grego, a Grega, frequentadores dos Old Kopenhagen, El Moroco, Volga ou Mont Serrat, bares que nos lembram o Mexico-City, de Camus. Nomes patronímicos, que identificam património – Braz Aguiar, Epifânio Peremateu, Plínio Giancotti – são raros e sempre de discurso indireto.
 
O nome próprio aparece quando muito ligado à profissão, ou à ausência dela, como se fossem um agnome epitético, sem valor jurídico: o vagabundo Plínio, o Malandro Sarará, uma Milena que trabalha no Las Vegas. Os nomes próprios revelam-se equívocos, ironias, ilusões e provocações. O Grego e a Grega só se tinham conhecido por causa do apelido. Eram até parecidos, mas o Grego era português, de olhos azuis, e a Grega catarinense. João de Angola viera do Rio Grande do Norte. Plínio, o velho, é chamado Primo pelos que não conseguem afinal pronunciar o nome.
 
Paquetá tem outra toponímia para os que lá não moram. Os jornalistas chamam-lhe Boca do Lixo. Mas “Nós, os daquele tempo, sabemos que, se hoje o beira-cais é quase conhecido apenas pelo nome de Boca, deve-se a um maldito portenho que, um dia, desembarcou aqui e achou de comparar este pedaço de porto com o bairro de La Boca, de Buenos Aires. Mas igual a este beira-cais, como dizem os velhos marinheiros, não existe lugar em outra parte do mundo”.
 
Entre a representação do universal e do irrepetível, os nomes próprios criam, goram e recriam diferentes horizontes de expectativa de quem habita o “beira-cais”, fio-da-navalha: o espaço onde as mulheres das ruas não se entregam porque só vendem o corpo, onde as crianças “dormem com os pederastas e vivem de pequenos furtos”, onde os antigos escravos sonham com a moça loira que anuncia a Coca-cola num out-door, e os trabalhadores da estiva gastam o salário no esquecimento prometido pelas tabuletas utópicas: Estrela da Manhã, Chave de Ouro, Gold & Silver, Las Vegas, Salão Azul, Imperial, Pavão de Ouro, Zanzibar, Zanzi, etc… Ah, a ironia dos analfabetos no bar ABC, ou dos famintos no Maxim’s!…
 
O equívoco do nome próprio é quase um tema, desde as primeiras linhas: qual a origem etimológica de Paquetá? O narrador recupera uma nota de rodapé do volume II da História de Santos, de Francisco Martins dos Santos (o nome do historiador é um “nome motivado”, como os que existem nos romances). Segundo aquele historiador, Paquetá não significa, como é ideia comum, um “lugar ou viveiro das pacas”.
 
O vulgo e os historiadores são vítimas de “etimologias simplificadas”, da “invenção de tradutores fáceis”. E as pacas, como toda a gente sabia, só vivem em água doce e límpida, impossível nos pântanos (ainda visíveis numa fotografia de Paquetá de finais do século XIX). “Conta ainda que a verdadeira etimologia da palavra Paquetá é PAÃIQUÊ-TÃ, por contração: PÃ-QUE-TÀ, que, com o tempo e por evolução, se tornou PA-QUE-TÃ. E explica: ‘PAÃ – atolar; IQUÊ – lado, costado; e TÃ – apócope usual de TATÃ – duro, forte -, significando lugar de atoleiro forte, mais forte do que em outros lugares da ilha habitável”.
 
Não menos fantasista que a do vulgo, esta explicação “científica” de F. M. dos Santos assemelha-se afinal a um processo romanesco. Também a ficção reproduz fenómenos de contração e apócope, sincretismo e esquecimento. O romance, como a evolução de um nome próprio, é um processo de densificação do tempo-espaço, e faz do “efeito de real” um exercício de possibilidades. Também por isso este é um romance, como escreve Faerman, “de sons delicados”.
 
__________________
*Maria Luísa Malato é professora associada (com agregação) na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Membro do Instituto de Literatura Comparada e da Sociedade Portuguesa de Retórica, faz parte da direção da Associação Portuguesa de Literatura Comparada. Especialista no século XVIII português, é autora de Manuel de Figueiredo: uma perspectiva do neoclassicismo português -1745-1777 (Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1995), Por acazo hum viajante... a vida e a obra de Catarina de Lencastre, Viscondessa de Balsemão,1749-1824 (Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2008), História da Literatura Europeia: uma introdução aos estudos literários (Lisboa: Quid Juris, 2008),entre outros.

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Autor

» Rogerio Guarapiran

Rogerio Guarapiran nasceu em Taubaté-SP (13 de março de 1983). É dramaturgo, músico e produtor cultural. Estudou Letras na Universidade de Taubaté (UNITAU) e Linguística na Universidade de Campinas (UNICAMP). Graduando em Ciências Sociais na Universidade de São Paulo (USP). Iniciou no teatro amador em 1998 e fundou, junto com Renan Rovida, o grupo de teatro Pé-de-Couve e a banda Mantra, espaços onde começou a desenvolver sua autoria em teatro e música. Trabalhou como técnico em eletrônica em fábricas e empresas e como educador na rede municipal de Taubaté. (Saiba mais)

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